A brancura da casa da Vicência não se fica só por fora. É também por dentro. Cobre as paredes das divisões; estampa-se nos cortinados de renda que caem das janelas; no ferro das camas, das almofadas e colchas; em algumas louças de servir à mesa. Mesmo quando salpicadas por raras flores coloridas ou cintadas por finas faixas de cor. É uma alegria branca, que limpa e refresca os olhos, sobretudo, quando me fixo na tristeza deste chão de lousa, rosa escuro, tão envelhecido pelo andar dos pés e do tempo.
E tanto a imagem de brancura da casa me atrai, que mal ouço a Vicência aceitar alugar-me um dos quartos para vir a ocupá-lo no próximo mês de Agosto, ainda tão a milhas de distância...
Ao transpor a soleira gasta da porta, por pouco o bafo de calor não me sufoca.Toda a aldeia, despovoada, ferve! Há de ser este o ar aproximado ao que se respira às portas do inferno para quem nele acredita! E quanto faltará para que este sol não comece a abrir sulcos na pele e a encegueirar os olhos?
Mas por ora, o que importa, é chegar ao largo; depois, atravessar os campos, calcorrear a estrada retilínea, que varia de extensão segundo a temperatura do dia, até alcançar, por fim, a velha igreja.
O que me atrai, porém, é aquela gota de água, que vai inchando na bica até cair a prumo. E logo o movimento de vaivém que imprimo à manivela, e faz jorrar, grossa, ás golfadas, a água com que ensopo a cabeça escaldante, mato a sede e ganho ânimo para trepar pelo cabeço até ao cume onde se encontra o cemitério: uma reprodução em miniatura - eis o que me ocorre - da própria aldeia que se avista ao longe...
Um lugar onde apenas a luz faísca sobre a aridez marmórea das lages sepulcrais, caso não queira dar mais conta de nada...
Mas eu quero! E é então que, pouco a pouco, começo a ouvir vozes, como se florissem através dos poros da terra; sombrias vozes, anestesiadas por um prolongado sono, esfriando momentaneamente a luz... Subterradas vozes que, sem deslindar o que dizem, causam arrepios. Como se, de súbito, fôssemos acometidos por um febrão! E eu voltasse a ter a doença que tive em menino! Não! O melhor é deixar de desatar os nós destas lembranças, apressar o passo, sair, ouvindo apenas o gemido do portão a soar atrás de mim!
Olho as esguias cruzes de pedra, que se encontram em torno do cemitério,vagueando, errantes, pelo declive, quais figuras humanas de braços abertos. Sim! A sede voltou e há que descer o pequeno cerro e dar, de novo, à manivela do poço.
É domingo. Um bando de pardais, entretanto, larga o telhado da igreja e voa em direção ao Guadiana que corre lá em baixo... Também precisam de afogar a sede. E eu, de caminhar um pouco mais. A cada passo, sinto a aspereza da ardósia, enquanto mastigo o pó levantado à passagem acelerada de uma viatura... Em pouco tempo, porém, eis o rio, tateando as sinuosidades calcinadas das margens e, um pouco mais adiante, o dique a reter as águas, onde um grupo de rapazes chapinham e gritam, infatigáveis. Bradam, esganiçados, ainda mais alto do que a telefonia soprando um música pimba, estrategicamente suspensa na cantaria de uma antiga azenha, improvisada em bar.
E vai uma coca cola! E vai um ice tea! Mas é o espírito frio e acre das minis, com tremoços ou amendoins, que têm mais saída. Bebem-na os homens. E também eu, outra e outra, com os cotovelos apoiados no balcão, enquanto a tarde avança... E não ser possível imobilizar os ponteiros do cronómetro do tempo por uma hora que fosse, quase me revolta!... Sobretudo, a partir deste instante, em que a telefonia se calou de vez, não tardando a que, tanto os homens como as aves comecem a debandar...
Aldeia da Luz, 2001