sábado, 20 de outubro de 2018

Carta antiga a uma amiga que foi



    
        Há amores azuis, amarelos, verdes, roxos... Mas também existem recentemente uns amores de tons difíceis de catalogar, produzidos pelos processos informáticos  dos computadores, como a cor  que se  espelha do carro da Guida.... Seguramente que são inúmeras as cores deste gostar de alguém ou de alguma coisa.
       Por mim, acho que uma pessoa não gosta só com uma cor de gostar, mas com duas ou duas mil. O que eu sei é que não amo nunca em branco, nem com branco, em lume branco... Se o uso para exprimir coisas a alguém é só por distracção, e com toda  a certeza que nessas alturas o branco sai salpicado de pingos de óleo negro, ou de manchas de cera duma vela ardendo por alguém que foi e não volta mais....
        Estou para aqui a especular sobre a matéria cromática do gostar, parece-me que de ti e, ás vezes, quando estou distraído, tenho a ligeira sensação que gosto de ti em arco-iris. Não achas que são demasiadas cores? Sete! Claro que há mais, ou não fosse dar crédito a um amigo meu que é cientista e afirma reconhecer sete mil cores. Mas, minha amiga, sê modesta e contenta-te com aquilo que te dão se for bem dado...
       Este livro que te ofereço também é bem dado. Está cheio de cores, embora, predomine o preto. O branco está lá só por estratégia: mostrar a importância do preto. O preto é a fotografia; o preto é o negro africano que passa a vida a tropeçar na minha máquina fotográfica quando eu faço um disparo. Preto é quando penso pensar em ir a Marrocos, que nunca mais vou, ou até à cama que continuo a ir, embora, por vezes acompanhado de insónias...  
       Eu, ultimamente, também ando vestido de preto para andar melhor impressionado comigo. Já reparaste nisso? Aposto que não. Mas que importa! Eu estou demasiadamente a falar no eu, mas não penses que as coisas andam só à volta de mim. Também andam à tua volta. Eu próprio ando à tua volta quando tu andas à volta de mim. Mesmo sem haver aquelas noites africanas: “Faz-me Festas em Lisboa”...
       E agora vou acabar com o eu para te dizer que não acho que este livro que te ofereço seja uma grande coisa. A amizade também é porreira; aquela criticazinha, carago, também estimula um pouco… Mas adiante!     

       Há eus que têm necessidade de arranharem um pouco os outros eus. Ou os eus dos outros. Por causa dum tique. Duma convicção. Dum princípio. Ou, quem sabe, de uma miopia galopante. Duma má diGESTÃO: um tipo come demais de um lado e menos de outro. ( Não alteres o sentido da última frase, que a pornografia não faz nada aqui...) Ás vezes, a gente quer pôr o mundo quadrado, farto de o ver monotonamente redondo.  Ou não é assim?
       Mas estava eu a querer dizer que o livro não é grande coisa. Se houve coisa grande foi eu andar tanto tempo na Zona Oriental de Lisboa para isto, que podia ser melhor, se me fosse dado a mim substituir a gaja das ampliações que até era engraçada, se pudesse ainda acompanhar mais de perto o trabalho dos outros tipos-empresas que o produziram.
        Aproveito para dizer-te tudo isto, porque mesmo que queiras, nunca me darás os ouvidos, os teus, que eu mereço, pois ultimamente vejo-te  sempre mais ligada  ao computador do que a qualquer outra pessoa como eu a quem não faltam também programas, teclas para primir, ESCS, CTRIS, PAUSES e coisas do género...
       Bom, não sei se deste por isso, mas a tarde cai, embrulhada num papel de ruído que vem duns operários que estão a fazer buracos na minha rua e da Guida.( Continuamos juntos, é sabido e também, suponho por causa do preto....)
        A tarde cai com a música duma broca a partir o cimento. A tarde cai e não tarda que o dia se ponha pretinho como eu gosto. Não agradeças o tempo que perdi contigo numa coisa que dá mais trabalho que uma acta do C. P. O Tempo perdido contigo, ganha-se!
       A tarde continua a cair,  agora com o bater contínuo duma picareta ou dum martelo no passeio. Não chega a tremor de terra, mas anda próximo. Quando eu era puto andava sempre a dizer um poema dum poeta russo que perguntava:  “quando a guerra vier...


Vamos morrer abraçados?”

       Qualquer escrita me parece sempre a mim mais difícil do que fotografar ( difícil não é o termo apropriado, mas o ruído que entra aqui  serve para justificar a incapacidade de substitui-lo por outro vocábulo mais flexível).
       Ó ruído não te cales que a gente sempre precisa de um argumento para camuflar as nossas insuficiências. Falo da escrita, insistindo  na dificuldade que sinto em ser bem sucedido, quando a comparo ao acto fotográfico. Na verdade, tenho para mim  que a elaboração de uma simples acta de uma reunião de grupo disciplinar ou do C. P. pede mais concentração e habilidade do que tirar o retrato ao português mais ilustre, dentro de um estúdio e com a preocupação de explorar devidamente os projectores, o tripé, caso o usasse, e o grão da película... 

                                                            Lisboa, 1998