segunda-feira, 17 de abril de 2017

CRÓNICAS DO TEJO ( TRINTA)




Como uma lágrima tua nos meus dedos

Monstros, monos, mastronços, mostrengos é o que se queira. Por mim, não os poupo! Impossível pô-los a falar ou falar com eles! E se me provocassem riso, mas não! Antes me incitam à blasfémia! Então, a personificação do Tejo na figura agigantada de um barbudo com ar robotizado, encimado por uma estrela é demais! Quase tropeço com os olhos!  Antes a escultura do Cálice, imaginariamente a transbordar de vinho para os beiços gordos e sedentos de algum baco que por aqui passe! E do touro ostentando igualmente uma estrela na cabeça. Onde meteu ele a força para marrar? E do cavaleiro façanhudo a investir contra a gente moura. Quantos símbolos estelares arrancados abusivamente aos céus!

E porque não hei de vendar os olhos até me ver rodeado por outras imagens? Como a visão de um círculo de sereias à minha roda, acobreadas, douradas, prateadas; de origem negra, branca ou asiática; de lábios tingidos com as cores do arco iris… Mulheres-peixe, com pele húmida escorregadia de óleo de mel. Sereias sem alianças a anilhar-lhes os dedos, crucifixos ao pescoço, tatuagens, correntes nos pés… Sereias com escamas das carpas do Tejo; das garoupas que entram no estuário; do lúcio estrangeiro, voraz; do migrante sável, que uma barragem impede de ir mais além… Sereias acantonadas em torno do Nacimiento del Tajo onde o verão cedeu repentinamente lugar ao frio. Ou será impressão minha, causada pela manhã ir ainda a meio, do efeito da noite mal dormida, do contacto com a água gelada que cai da bica? Um fio menos espesso que o meu dedo mindinho! Uma veia de sangue cristalina que, no dizer do Saul vem de mais atrás, mas que para mim, vem de todas as direções: do vapor das nuvens às toalhas subterrâneas de água; dos afluentes ao atlântico que irriga o Tejo a cada maré que sobe. De um polo a outro da terra, para já não falar dos astros apagados ou pululantes de vida. E quem sabe se mesmo eu próprio não o alimente!...

Então, inspiro fundo como um animal que procurasse o cheiro de uma fêmea muito ao longe… Sorvo o ar em intervalos breves e ouço-me respirar… A sensação de estar a aquecer o frio! Da luz tornar-se mais intensa deixando-me, neste instante, quase cego! E a crescer como o caule de uma planta a inchar e a estender-se fremente, sem fenecer… Uma gota de seiva húmida a molhar-me, como uma lágrima tua nos meus dedos. A água da tua boca na minha! E deixa-me afagar os cabelos de seda da tua cabeça, ó minha rapariga mulher, tão despida como este céu sem nuvens! Este espaço em redor, como se fosse temporariamente subtraído do mundo, sem vivalma… Apenas desvendada pela ave de rapina que do alto te fixa, assim nua ao sol, que faz luzir o quartzo cristalino das pedras e as gotas do orvalho do musgo!

Ó minha mulher desabrigada, deixa-me beber-te a alma pelos mamilos; ajoelhar, oferecendo-te a cabeça às tuas coxas. Qual oferenda deposta num altar dos antigos deuses. Voltear-te pela cintura até colar-me à maciez redonda das tuas nádegas. Depois, lábios nos lábios, dizer que te amo para quê, se o teu coração bate na palma das minhas mãos junto do meu!…E se alguma dúvida houver, podemos trocar de corações para saber qual dos dois bate mais pelo outro…

E como este frio da manhã me acende, que nem um álcool… E o sono que trazia se esvai até chegar à bica de água que mal corre ao pé de nós! Como nos agasalhamos um ao outro nesta manhã, enquanto, nem sei se grito ou gemo, ao arrepio que me trespassa pelo corpo, e uma estrela explode entre as minhas virilhas como o fio de água da nascente que chapina no fundo onde cai! E que lâmpada, de súbito, se ilumina na minha escuridão interior? E que toada de silêncio ouço? E que bolhas de ar me parece ver à nossa volta? Ó meu sal, meu açúcar, minha canela, minha pimenta; prazer meu e minha dor!

E como tão de repente, levantou o vento! Será para anunciar a aproximação de alguém? Ó minha mulher-rapariga quanto me sinto agora tão cansado. Como se tivesse arrancado à corda um balde pesado de água do fundo de um poço! Deixa-me, de novo, fechar os olhos, sabendo de antemão que, ao abri-los, já te foste embora! Morrer pela eternidade de um minuto. Sentir, pouco a pouco, apagar-se o fogo lavrado no meu corpo por ti! E a ave de rapina ainda a vejo no alto. Será que te segue por onde quer que vás? Mas não és tu quem ainda avisto meia imersa na pequena laguna mais além? Eu sei, a miragem que me persegue para onde quer que vá! Sempre tu, com os calcanhares a baterem nas sandálias, correndo pela borda do rio, sem dares pela chegada do instante da minha partida. Do sinal do meu adeus. Que vou deixar-nos aos dois, e partir eu só!

                                       
                                                                     Parque-Expo, Lisboa, 4 Março, 2917