terça-feira, 22 de novembro de 2016

O Sol no Teto

 Na Medina de Fez

Canso os pés
Na pedra da calçada
As mãos no saibro 
De uma esquina


Arrasto um fardo
De terra preso
Ao fundo da boca

Coso e remendo
As minhas sílabas
Que são tantas 
Quantos os poros
Do meu corpo

Prolongo-me no braço
A quem peço

Que me compre
Que me venda
Que me troque

Uma moeda
O olhar
De uma palavra
  



Alto Atlas

Esforço de dentes e raiva
Ante a dimensão da paisagem

E calar
Ter pronta a saliva
E não morder

Sentir apenas
O tato leve 
Da semente

A forma

Nunca a síntese

Sempre



Aldeia a Sul

A prumo
A tua voz cai
No arco da duna

Uma raiz
Uma lágrima
Um poço

Perto
A porta aberta
Duma casa



Searas de Casablanca

Caminho de seara
No meio azul da pedra

Caminho de trigo
Que é o meu

A tempestade
Não governa a fome

A ordem da cidade
Não me cala a boca

Amanhã
Hei de falar com o sol
Dentro de casa




Direi que a FUGA fica ao sul onde mora a
memória e que o percurso das sílabas 
não é fácil. Direi que, uma vez chegados
à ultima fronteira do texto, perdemos
para sempre o vago conceito de limite.
A partir daí é o excesso.

In " O Sol no Teto", 1984 - Desenhos de Pissarra Luís

Coisas para meter medo aos pássaros



Uns eram moços sadios. Outros, já adultos, um pouco "loucos", mas ainda com tino bastante para afugentarem os pardais que vinham  ao grão dos lavradores.

Então, corriam de braços abertos, apanhando aqui e ali pedras do chão que logo arremessavam contra os intrusos, aos gritos como numa zanga a sério, enquanto os chocalhos, amarrados à cintura, a par de outros penduricalhos de ferro ou latão, se faziam ouvir em redor.
 
Espanta-pássaros de carne e osso, está visto, que  procuravam evitar a rapinagem do pão nas searas do Alentejo, e  que apenas são relembrados por alguns velhos… 

Hoje, contam-se os espantalhos que restam nas hortas e pomares, não passando de uns esqueletos quase sempre masculinos, envoltos em palha e trapos velhos, almofadados com uma blusa, camisola, algum casacão esburacado. 

Quando não se restringem à configuração de meras silhuetas humanas, recortadas á serra numa tábua de madeira, ou esculpidas a partir de um espesso e leve bloco de esferovite.

Sim, porque um único ramo implantado na terra, donde se suspende uma saia rota, um colorido saco de plástico, ou o testo de uma panela, não pode ser tomado como um verdadeiro espantalho, apesar de, à mais ligeira deslocação do ar, a pendureza se agitar, provocar ruído, soar a alarme….
 
Quanto a mim, estes simples engenhos mais não são do que meros símbolos hasteados, significando qualquer linguagem obscura, instrumentos mágicos contra o mau olhado; expedientes usados para fazerem recair sobre alguém uma maldição, um mau feitiço, não sei!...

Mas para o Zé da Bica, que trabalha numa oficina de mecânica de automóveis, e aos fins de semana cuida de uma pequena parcela de terra na região saloia, não lhe resta qualquer dúvida:

" sejam o que forem,  são coisas para meter medo aos pássaros! "


 in Notícias Magazine, Novembro,1998 ( texto e fotos do autor)