segunda-feira, 15 de maio de 2017

CRÓNICAS DO TEJO ( TRINTA E UM)




O eu que vai, vem igual
Tivesse dado a volta ao mundo, mas não: o que fiz foi atingir um ponto peninsular demasiado próximo, numa peregrinação motorizada em alternância com raras e curtas caminhadas. Sem uma única vez me confrontar com algum risco, o mais pequeno sobressalto ou desafio inesperado…. Aqui, além, uma outra tensão, sim, mas logo dissipada, passos ou quilómetros mais adiante.

Quanto a estados de inquietação, de tão costumeiros, esteja onde estiver, nem vale a pena procurar contabilizá-los. Também não estou empenhado em olhar para trás, e inventariar a frequência e a amplitude das emoções sentidas no decurso do meu episódico nomadismo errante pelo Tejo acima.

Sei é que ao aguardar pelo pequeno-almoço numa esplanada às moscas, em Frias de Albarracim, o que me domina é antes uma sensação de perda. Como a causada pelo derrube involuntário de uma peça de estimação desfeita em cacos. Ou uma impressão semelhante à suscitada pelo sumiço de um poema acabado de escrever num papel solto, que uma repentina e, bem distante já, revoada de vento levou para bem longe…
Certo é que, sem querer ainda equacionar o retorno, não vejo como contornar essa inevitabilidade. Ou não saiba de antemão que, mal me faça à estrada, logo dê por mim a puxar pelo motor numa imparável correria por quilómetros a fio! Sim, como se, a partir de agora, deixasse de haver mais Tejo! 
Quem se terá evaporado, ao que presumo, foi o empregado de mesa ao esquecer ou ignorar  o pedido do meu pequeno-almoço! E a ser assim, porque espero?

Pois bem, uma aceleração que não se esgota no abreviar da duração do regresso, mas no prazer que me causa a velocidade em si. E ainda num continuado sentimento de evasão, tão próprio ao presidiário perseguido numa fuga. Mas, no meu caso, uma evasão a quê? Ora, ao tempo! Esse implacável colonizador de todos as coisas, seres e cantos do mundo, não fixável em calendário algum, invisível no mínimo grão a passar numa ampulheta, de uma âmbula para outra…

O tempo, que pressinto a todo instante, em cada neurónio, ruga, sinal de pele, gota de suor, fluir sanguíneo…. Que me pesa nas pálpebras e me irriga o pulmão, com este cheiro emanado de uma geografia exterior ao quotidiano da minha vida.
Tempo oscilante, que ora me agita em sonhos, ora me esmorece em taciturnos e desalentados pensamentos… O que torna as idades emolduradas dos meus pais em cima da minha cómoda, cada vez mais novas em relação á minha. E a tua idade, rapariga-mulher dentro do porta-luvas do Citro, cristalizada ilusoriamente para sempre.

Entretanto, ao deixar Albarracim, nada me dispõe a fazer uma segunda viagem da descoberta do Tejo. Nem pensar! Que chegar até aqui foi uma coisa; voltar ao ponto inicial da partida, outra. Daqui para a frente, não se trata de repetir o filme, mas sim da rendição incondicional à irreversibilidade do retorno! Acabou! Arrumar o livro na prateleira depois de lido, eis o que se impõe. E só voltar, eventualmente, a abri-lo apenas para reler o fragmento da frase sublinhada ou a passagem de um certo capítulo…

Eis o que farei com um ou outro esparso e subjetivo retalho da curta-metragem deste passeio, caso dê para isso. De resto, em nenhuma das minhas andanças, subtraí ou acrescentei nada de assinalável em mim, ao ponto de perder de vista quem sou. O que sempre me tenta, desafia, anima, mas  também me intimida, cansa e retrai…

Qual tatuagem no corpo, nenhuma saída até agora, seja para onde for, apaga o que me marca! Nem mesmo a mudar de pele ou descarnado de todo, haveria de me sentir outro! O eu que vai, vem igual. Sem tirar, nem pôr. Para perto ou longe. Quer faça de cão à solta ou preso à trela; de ovelha indefesa ou de quimérico lobo mau; de palhaço a rir, aplaudido pelo público ou a chorar a sós consigo, na intimidade de um camarim vazio…

Em uma única vadiagem fui tocado por qualquer varinha mágica que fizesse de mim um homem novo! Nunca! Salvo, talvez, no momento em que me estreei, como um ator em palco, pelas velhas ruas de Toledo, com um chapéu na cabeça!…

E agora? Para que procurar saber as horas, quando sinto a pressão do tempo a impelir-me a arrancar de vez, e este persistente trinado do que julgo serem cigarras, começar a deixar-me ligeiramente atordoado.

Ou será da floração das resinosas e frágeis estevas? Do cheiro intenso à urze? Deste arpejo choroso da muito ligeira brisa por entre as agulhas dos pinheiros, que me soa ao crepitar da água do Tejo a roçar pelas margens…

Sim, acaso não arranque neste instante, não só adio o momento presente, como a possibilidade de chegar hoje mais longe… E nada importa saber  quantas etapas tenho pela frente. Em que instante paro e onde chegarei. Assim, para diante e já! Até ao alcance de um limite imposto pela fome, a fadiga, o estado de espírito, o avanço do dia… Em demanda de outros horizontes, cenários, destinos rodados pela estrada, e que uma vez projetados incessantemente na tela do para-brisas, mal chegam a alojar-se na retina…

E vê tu, tempo, quanto acelero sem um único arfar, ai de dor, suor de frio, sufoco de calor! Como se acabasse de me furtar às tuas garras, sem deixar qualquer sinal do meu rasto.

Qual presa bem capaz de ludibriar o predador, desencorajando-o a persegui-lo mais.


                                                                      Lisboa, 15 de maio, 2017