O eu que vai, vem igual
Tivesse
dado a volta ao mundo, mas não: o que fiz foi atingir um ponto peninsular demasiado
próximo, numa peregrinação motorizada em alternância com raras e curtas
caminhadas. Sem uma única vez me confrontar com algum risco, o mais pequeno
sobressalto ou desafio inesperado…. Aqui, além, uma outra tensão, sim, mas logo
dissipada, passos ou quilómetros mais adiante.
Quanto
a estados de inquietação, de tão costumeiros, esteja onde estiver, nem vale a
pena procurar contabilizá-los. Também não estou empenhado em olhar para trás, e
inventariar a frequência e a amplitude das emoções sentidas no decurso do meu
episódico nomadismo errante pelo Tejo acima.
Sei
é que ao aguardar pelo pequeno-almoço numa esplanada às moscas, em Frias de
Albarracim, o que me domina é antes uma sensação de perda. Como a causada pelo derrube
involuntário de uma peça de estimação desfeita em cacos. Ou uma impressão semelhante
à suscitada pelo sumiço de um poema acabado de escrever num papel solto, que
uma repentina e, bem distante já, revoada de vento levou para bem longe…
Certo é que, sem querer ainda equacionar o retorno, não vejo como contornar essa inevitabilidade. Ou não saiba de antemão que, mal me faça à estrada, logo dê por mim a puxar pelo motor numa imparável correria por quilómetros a fio! Sim, como se, a partir de agora, deixasse de haver mais Tejo!
Quem se terá evaporado, ao que presumo, foi o empregado de mesa ao esquecer ou ignorar o pedido do meu pequeno-almoço! E a ser assim, porque espero?
Certo é que, sem querer ainda equacionar o retorno, não vejo como contornar essa inevitabilidade. Ou não saiba de antemão que, mal me faça à estrada, logo dê por mim a puxar pelo motor numa imparável correria por quilómetros a fio! Sim, como se, a partir de agora, deixasse de haver mais Tejo!
Quem se terá evaporado, ao que presumo, foi o empregado de mesa ao esquecer ou ignorar o pedido do meu pequeno-almoço! E a ser assim, porque espero?
Pois
bem, uma aceleração que não se esgota no abreviar da duração do regresso, mas no
prazer que me causa a velocidade em si. E ainda num continuado sentimento de evasão,
tão próprio ao presidiário perseguido numa fuga. Mas, no meu caso, uma evasão a
quê? Ora, ao tempo! Esse implacável colonizador de todos as coisas, seres e
cantos do mundo, não fixável em calendário algum, invisível no mínimo grão a
passar numa ampulheta, de uma âmbula para outra…
O tempo, que pressinto a todo instante, em cada
neurónio, ruga, sinal de pele, gota de suor, fluir sanguíneo…. Que me pesa nas
pálpebras e me irriga o pulmão, com este cheiro emanado de uma geografia exterior
ao quotidiano da minha vida.
Tempo oscilante, que ora me agita em sonhos, ora me esmorece em taciturnos e desalentados pensamentos… O que torna as idades emolduradas dos meus pais em cima da minha cómoda, cada vez mais novas em relação á minha. E a tua idade, rapariga-mulher dentro do porta-luvas do Citro, cristalizada ilusoriamente para sempre.
Tempo oscilante, que ora me agita em sonhos, ora me esmorece em taciturnos e desalentados pensamentos… O que torna as idades emolduradas dos meus pais em cima da minha cómoda, cada vez mais novas em relação á minha. E a tua idade, rapariga-mulher dentro do porta-luvas do Citro, cristalizada ilusoriamente para sempre.
Entretanto,
ao deixar Albarracim, nada me dispõe a fazer uma segunda viagem da descoberta
do Tejo. Nem pensar! Que chegar até aqui foi uma coisa; voltar ao ponto inicial
da partida, outra. Daqui para a frente, não se trata de repetir o filme, mas
sim da rendição incondicional à irreversibilidade do retorno! Acabou! Arrumar o livro na prateleira depois de lido,
eis o que se impõe. E só voltar, eventualmente, a abri-lo apenas para reler o fragmento
da frase sublinhada ou a passagem de um certo capítulo…
Eis
o que farei com um ou outro esparso e subjetivo retalho da curta-metragem deste
passeio, caso dê para isso. De
resto, em nenhuma das minhas andanças, subtraí ou acrescentei nada de
assinalável em mim, ao ponto de perder de vista quem sou. O que sempre me
tenta, desafia, anima, mas também me intimida,
cansa e retrai…
Qual
tatuagem no corpo, nenhuma saída até agora, seja para onde for, apaga o que me
marca! Nem mesmo a mudar de pele ou descarnado de todo, haveria de me sentir
outro! O eu que vai, vem igual. Sem
tirar, nem pôr. Para perto ou longe. Quer faça de cão à solta ou preso à trela;
de ovelha indefesa ou de quimérico lobo mau; de palhaço a rir, aplaudido pelo público
ou a chorar a sós consigo, na
intimidade de um camarim vazio…
Em
uma única vadiagem fui tocado por qualquer varinha mágica que fizesse de mim um
homem novo! Nunca! Salvo, talvez, no momento em que me estreei, como um ator em
palco, pelas velhas ruas de Toledo, com um chapéu na cabeça!…
E
agora? Para que procurar saber as horas, quando sinto a pressão do tempo a
impelir-me a arrancar de vez, e este persistente trinado do que julgo serem
cigarras, começar a deixar-me ligeiramente atordoado.
Ou
será da floração das resinosas e frágeis estevas? Do cheiro intenso à urze? Deste arpejo choroso da muito ligeira brisa por entre
as agulhas dos pinheiros, que me soa ao crepitar da água do Tejo a roçar pelas
margens…
Sim,
acaso não arranque neste instante, não só
adio o momento presente, como a possibilidade de chegar hoje mais longe… E nada
importa saber quantas etapas tenho pela
frente. Em que instante paro e onde chegarei. Assim, para diante e já! Até ao
alcance de um limite imposto pela fome, a fadiga, o estado de espírito, o
avanço do dia… Em demanda de outros horizontes, cenários, destinos rodados pela
estrada, e que uma vez projetados incessantemente na tela do para-brisas, mal
chegam a alojar-se na retina…
E
vê tu, tempo, quanto acelero sem um único arfar, ai de dor, suor de frio, sufoco
de calor! Como se acabasse de me furtar às tuas garras, sem deixar qualquer
sinal do meu rasto.
Qual
presa bem capaz de ludibriar o predador, desencorajando-o a persegui-lo mais.
Lisboa, 15 de
maio, 2017