Pois eu só quero pensar em mim!
O Tejo? Ora, sumiu-se. O que há é a vasta massa rasante de água duma albufeira que parece não acabar diante dos olhos… Nem sei se me dá vontade de cair nesta paisagem, interditada por muros e vedações privadas envolvendo matagais, coutos, barrancos e vales, alguns dos quais destinados ao pastoreio de bovinos. E também algumas esparsas edificações, como a do clube náutico de Tajomar, estritamente facultado aos sócios...
O
Tejo aqui foi eliminado como a palavra Tejo o é, bastando para isso uma ligeira
pressão digital na tecla delete. Tampouco
poderá vislumbrar-se nele algum vestígio do passado. Minto, que as ruínas da
ponte romana de Mantilde ainda permitem calcular, durante a época seca, a
dimensão do antigo leito…
Mas fora isso, como redesenhar o seu curso primitivo?
Deslindar as sinuosidades das margens? Medir-lhe a fundura? Sentir a sua
corrente? Só, talvez, deitar-me com o ouvido, como uma ventosa espalmada contra
o chão, auscultando os sons ainda audíveis do passado! E é assim que ouço o
rolar de um seixo pela água! E este incessante turbilhonar da corrente, semelhante
ao sopro do vento nos búzios das velas de um antigo moinho! Ou ao prolongado
estrondo de uma queda de água? Quando não mesmo ao motor de um avião em voo rente
ao chão? Ao certo, não sei… Mas que é o rio a entrar-me pelo ouvido, a subir à
cabeça e a descer ao coração, sem dúvida! O rio impetuoso pela época das chuvas
invernais, a lascar os gumes das fragas entre as explosões fosforescentes de
espuma, arrastando tudo à frente: árvores, pedras e animais. E eu só pesco amarrado
a uma grossa corda atada à argola de ferro embutida na rocha, não vá deixar
igualmente levar-me por ele!… Ou então não saio, mas para ficar a fazer o quê? A
esmagar as gotas de chuva que escorrem pelo lado de fora da janela? A arrepiar-me
com o vento ao entrar pelas frinchas dos vãos da casa? A sacudir as aranhas das
suas teias? A descobrir fantasmas nas manchas dos tetos? O quê? O gado?! Quero
eu lá saber dele! Que as águas não chegam ao estábulo, salvo se a terra vier a reclinar-se
para esta banda, trazendo o rio até aqui, obrigando-o a mudar de curso! Mas aí,
também se acabava a rega e o bebedouro dos animais! O próprio chão havia de
afundar-se com o tumulto das águas! Uma calamidade com a qual não conto! Quanto
ao gado e tudo o mais, que se amanhe, pois eu só quero pensar em mim! E nas coisas que me agradam: como na
mulher que vi uma vez além! Na idade em que ainda não contava os anos meus e os
dela! A mulher, quero dizer, a rapariga das argolas e das chinelas a baterem
nos calcanhares, sempre que se punha a correr! E como ela corria, a
esgueirar-se por esses pastos fora até ao Tejo!
Mas
agora, e desde que permaneço à cuca com os rumores da terra, o que ouço? Ora, uma vozearia! Falas de antanho, onde
entram histórias de secas e cheias, aparições e naufrágios, amores, crimes e
desavenças!... E tudo isto, escuta, tendo por fundo um cântico de chilreares de
pardais… Nostálgicas memórias de passados alheios, emudecidas de súbito por um
ruído exterior que me cerca.
E
eis então o que vejo: uma tribo de motares, com ar marciano, aterrando perto de
mim. Mas será que me incomodam? Nem pensar! Antes me deixam ainda mais relaxado
enquanto puxam pelos motores! Que gosto de ouvir bem alto tudo o que me agrada.
Como quando acompanho uma banda de jazz mesmo nas filas da frente. Ou aumento o
volume do rádio para ser ouvido no firmamento! E não deixar, num caso ou noutro, escapar uma única tecla, corda
dedilhada, sopro de um metal...
E
pudessem imaginar-me a tamborilar no
tampo de uma mesa! É como se fossem pés a sapatear! Trabalho de dedos! Só! O
indicador, o médio… o polegar a contrapor! De uma e outra mão, em alternância!
Então, quando apanham os nós da madeira! Mas que sons! Ia a dizer: mais
musicais, não? Talvez. Seja como for, o toque é outro, nota-se a diferença!... Mas
que grande baterista eu poderia ter sido! Com as minhas mãos a marcarem a cadência a todos os instrumentos! Um a um! Qual
narrador no meio dos diálogos a dar sentido a um texto! A impor o ritmo à falta
de um maestro! Palavra, que até chego a ouvir uma banda inteira, comigo na
precursão, com os bombos e os pratos! E
como o coração pula e a cabeça entontece com o batimento das maçanetas. Eu no
meio doutros músicos a dispensar, por mim, qualquer voz! Só instrumentais! Mas a não
poder-se dispensá-la, que fosse uma voz a cantar para ninguém! A timbrar, a
gemer, a desfalecer, a suspirar apenas para si. A chorar ou a gritar para um
deserto…
Uma voz a libertá-la do que a acorrenta! Como o faz qualquer motor de
uma mota quando acelera! E por que, diabo, não nasci com cabeça, tronco, membros
e uma mota de alta cilindrada? Uma Honda, Suzuki, Kawasaki, ou Yamaha para voar
pelo asfalto? E poder, enfim, tornar-me, a cada verão, num nómada solitário
mais rápido! Parando apenas em função dos meus gostos e apelos momentâneos… E
que me perdoe o Citro, um papa-quilómetros a deixá-lo vergonhosamente para
trás!
Eu
nascido com uma mota entre as virilhas, e bem firme nas minhas mãos! A buzinar
pelo ar fora sempre que me apeteça! A avançar a todo o gás! Sem ler os limites de
velocidade obrigatórios que tenho sempre pressa! E, demais a mais, que querem, quando
já paguei a carta de condução falsificada e sou por excelência um analfabeto?
Eu,
um baterista como há poucos e com
uma mota! Ainda me levo a sério! E com a memória de ti, atrás de mim, os teus
braços anelados à minha cintura! Caso fosse possível fazer marcha atrás no
tempo, até chegar a namorar-te outra
vez! E tu comigo! Estás a ver-nos pelo Tejo acima? Tu, com um baterista e um motar,
na mesma pessoa. Dois num só! Qual santíssima trindade, o tanas! Mas um par! E
que bonito era! Havias de ver!
Lumiar, Lisboa, 4 de fevereiro, 2017