quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

CRÓNICAS DO TEJO ( VINTE E UM)



O que devo esperar do futuro?


É uma velocidade morta! Não vejo outro modo de dizer como me desloco. Com o ponteiro do conta-quilómetros apontando oscilante para o lado esquerdo. Vou a 20, 30, 40… E já cheguei, em momentos de distração, a rondar a vertigem dos 60! Uma pasmaceira! Apesar de tudo, sempre ando mais depressa que a escada rolante de um centro comercial. Para já não falar na marcha estonteante de um caracol! Valha-nos isso! E é assim que, a este ritmo, vejo afastada qualquer repreensão por parte das árvores implantadas nas bermas da estrada, com óbvios objetivos de policiamento…Como se, ao mínimo descuido, acabasse por espalmar o ovo de alguma ave rara; trucidar uma gineta ao cruzar, rasteira, o asfalto; retalhar uma cobra de regresso à toca; intimidar um desprevenido ouriço cacheiro…
Monfrague é assim! Pouca poeira e nada de ruídos que conspurquem a sua imaculada atmosfera! Até posso imaginar como o inadvertido uso do cláxon soaria a alarme de incêndio florestal! E como é bom, sem sentimentos sacrílegos para com a natureza, poder respirar fundo o cheiro das matas que penetra pelas janelas e respiradores abertos do Citro. Isto, quando não decido largar o volante, uma vez por outra, para caminhar durante algum tempo, com a cabeça ocupada, ora com um lince ibérico, ora com um veado ou uma raposa, tão exemplarmente ilustrados nos prospetos turísticos do Parque Natural. À parte das espécies botânicas cujas nominações sempre me escapam! 
E quantos trilhos há trepando por esses cerros entre azinhais, sobros e medronheiros para calcorrear? E por matagais de giestas, senão mesmo pela orla fluvial em que crescem os freixos e rompem os silvados? Que veredas não desafiam à caminhada? Seja até à desembocadura do rio Tiétar, seja a transpor o esqueleto de cantaria da Puente  del Cardenal, nesta época, emersa! Porque não mesmo à aldeia, algo magrebina, de Villarreal de San Carlos, a que acabo de chegar de Citro, apressando-me a pedir uma canha à mesa de uma esplanada, enquanto abro o Michelin para localizar  o parque de campismo de Monfrague, afinal, nada longe donde estou! E aproveitar para fazer uma ligeira incursão cartográfica pelo itinerário de hoje que me trouxe até aqui!
E eis Garrovillas de Alconétar rente ao meu dedo indicador espetado no Michelin! E mais para montante, a ponte arruinada de Mantilde… Mas  a mulher que, afinal, era uma rapariga onde é que a vi? Ah, essa garantidamente não a encontro assinalada em mapa algum, mas só na minha cabeça baralhada! Paciência! Mas por que não hei de mudar de agulha, e antes ocupar-me em delinear o trajeto para amanhã? Mesmo que acabe por não o levar demasiado a sério!... Seja como for, deixa-me ver esta mancha azul a assinalar outra albufeira. Adiante, a Puente del  Arzobispo na direção de Talavera de la Reina e, a cerca de trinta  quilómetros de distância donde me encontro, mal posso crer: Almaraz! Mas que raio! Como haveria de me imaginar assim tão perto?
E é então que um arrepio me sacode o corpo enquanto sinto a garganta mais seca! Ora, outra canha, por favor! Não para a beber até ao lusco-fusco mas já, que quanto mais cedo chegar ao parque para armar a tenda e morfar alguma coisa, tanto melhor. E pisgar-me mal o sol se levante! Eis o que penso, minutos depois, diante do rececionista que aceita cobrar, antecipadamente, o preço do adulto que sou eu, da tienda e do coche. E é como a fugir daquele mau encontro com umas almondegas submersas num banho pastoso, que me lanço para a tenda já montada! Ainda antes de ouvir a passarada com mil chilreios ao recolher! E tomo um xanax ou não? Sim, tomo um xanax! Para não adiar por mais tempo o sono!
O chão parece abater um, dois degraus... Ou terei sido eu a desequilibrar-me com alguma tontura? Seja como for, o que me causa este mal estar? Mas que achaque é este? E que ruído de motor abala o céu que me faz levantar o queixo?  Ora, uma nave a parecer-se com um bombardeiro! E como vai alto! Porém, a maior surpresa dá-se quando, ao erguer a cabeça, ouço as vértebras ranger! Queres ver que te vais desconjuntar? Sim, porque os joelhos também não se mostram muito firmes…E agora? O que se passa? A que se deve esta súbita e alarmante sirene a propagar-se pelo ar? E ao que leva o coração bater assim, tão desenfreadamente, como se fosse sujeito a um esforço sobre-humano? 
 O certo, é que daí a instantes não evito conter o horror ao deparar com umas quantas aves a caírem como pedras ao  chão, dissipando-se logo de seguida em fumo! Nem deixar  de estremecer ante a visão de variados animais ardendo em chamas como tochas de fogo, procurando saciar a sede numa lava de água e lama! E que dizer do cardume de peixes, desprovidos de escamas e com as barbatanas esfarrapadas? A intentarem saltar para fora daquele magma, entretanto, prestes a chegar-me aos pés? Sim, o que se tornara suscetível de ocorrer num dia indeterminado, aconteceu hoje: a contaminação do ar, das águas e da terra; das pedras e plantas; dos homens e animais. E dos poros, fendas, nervos, sulcos e veias… 
Eu próprio, de costas espalmadas contra um tronco de árvore, que dúvida tenho em haver sido já contagiado? E diga-me qual o prognóstico, doutor! O que devo esperar do futuro? Ser carbonizado como uma planta lavrada pelo fogo? Ora, deixe-se de evasivas e responda-me: sim ou não? Será que me restará alguma saída? 

E por que não a súplica de um socorro que ninguém ouve? Ou um grito que vá pelo ar e faça alguém dar por mim? Para desatar este nó a asfixiar-me a garganta; limpar este suor que me inunda o corpo; afagar-me as pálpebras enquanto fecho os olhos… E por que demoram a trazer-me a garrafa de oxigénio e uma máscara? E se contar os meus dedos, será que corresponde ao número com que nasci? Tanto dos pés como das mãos! E o meu rosto? Ora, mostrem-me depressa um espelho que quero ver como estou! O quê?! Uma borbulha a mais?! E quem poderá assegurar-me que não venha a crescer até estourar de vez como uma bomba? Ó senhora enfermeira, será que devo preparar-me para morrer? Mas ser socorrido com remendos, pingos de cola, fios de cabelo e de náilon; gotas de óleo, pinceladas de tinta e de verniz; arames e tubos, isso também não. Nem tão pouco manter-me aqui vivo para abrir covas destinadas ás vítimas da central de extermínio de Almaraz. 

E quanto me custa, findo este pesadelo, ter que desmontar a tenda, passar a cara por água e abalar!


                                                     Lumiar, Lisboa, 15 de fevereiro de 2017