O que devo esperar do futuro?
É uma velocidade morta! Não
vejo outro modo de dizer como me desloco. Com o ponteiro do conta-quilómetros apontando
oscilante para o lado esquerdo. Vou a 20, 30, 40… E já cheguei, em momentos de
distração, a rondar a vertigem dos 60! Uma pasmaceira! Apesar de tudo, sempre
ando mais depressa que a escada rolante de um centro comercial. Para já não
falar na marcha estonteante de um caracol! Valha-nos isso! E é assim que, a este
ritmo, vejo afastada qualquer repreensão por parte das árvores implantadas nas
bermas da estrada, com óbvios objetivos de policiamento…Como se, ao mínimo
descuido, acabasse por espalmar o ovo de alguma ave rara; trucidar uma gineta
ao cruzar, rasteira, o asfalto; retalhar uma cobra de regresso à toca; intimidar
um desprevenido ouriço cacheiro…
Monfrague é assim! Pouca poeira e nada de
ruídos que conspurquem a sua imaculada atmosfera! Até posso imaginar como o
inadvertido uso do cláxon soaria a alarme de incêndio florestal! E como é bom, sem sentimentos sacrílegos para com a natureza, poder
respirar fundo o cheiro das matas que penetra pelas janelas e respiradores
abertos do Citro. Isto, quando não decido largar o volante, uma vez por outra, para
caminhar durante algum tempo, com a cabeça ocupada, ora com um lince ibérico,
ora com um veado ou uma raposa, tão exemplarmente ilustrados nos prospetos
turísticos do Parque Natural. À parte das espécies botânicas cujas nominações sempre me escapam!
E quantos trilhos há trepando por esses cerros entre
azinhais, sobros e medronheiros para calcorrear? E por matagais de giestas, senão
mesmo pela orla fluvial em que crescem os freixos e rompem os silvados? Que
veredas não desafiam à caminhada? Seja até à desembocadura do rio Tiétar, seja a transpor o esqueleto de
cantaria da Puente del Cardenal, nesta época, emersa! Porque
não mesmo à aldeia, algo magrebina, de
Villarreal de San Carlos, a que acabo
de chegar de Citro, apressando-me a pedir uma canha à mesa de uma esplanada, enquanto abro o Michelin para localizar o parque
de campismo de Monfrague, afinal, nada longe donde estou! E aproveitar para fazer
uma ligeira incursão cartográfica pelo itinerário de hoje que me trouxe até
aqui!
E eis Garrovillas
de Alconétar rente ao meu dedo indicador espetado no Michelin! E mais para montante, a ponte arruinada de Mantilde… Mas a mulher que, afinal, era uma rapariga onde é
que a vi? Ah, essa garantidamente não a encontro assinalada em mapa algum, mas
só na minha cabeça baralhada! Paciência! Mas por que não hei de mudar de agulha,
e antes ocupar-me em delinear o trajeto para amanhã? Mesmo que acabe por não o
levar demasiado a sério!... Seja como for, deixa-me ver esta mancha azul a assinalar
outra albufeira. Adiante, a Puente del Arzobispo na direção de Talavera de la Reina e, a cerca de trinta quilómetros de distância donde me encontro, mal
posso crer: Almaraz! Mas que raio! Como haveria de me imaginar assim tão perto?
E é então que um arrepio me sacode o corpo enquanto sinto a garganta mais seca!
Ora, outra canha, por favor! Não para
a beber até ao lusco-fusco mas já, que quanto mais cedo chegar ao parque para armar a tenda e morfar alguma coisa, tanto
melhor. E pisgar-me mal o sol se levante! Eis o que penso, minutos depois, diante
do rececionista que aceita cobrar, antecipadamente, o preço do adulto que sou eu, da tienda e do coche. E é como a fugir daquele mau encontro com umas almondegas submersas
num banho pastoso, que me lanço para a tenda já montada! Ainda antes de ouvir a passarada com mil
chilreios ao recolher! E tomo um xanax ou não? Sim, tomo um xanax! Para não
adiar por mais tempo o sono!
O chão parece abater um, dois degraus... Ou terei sido
eu a desequilibrar-me com alguma tontura? Seja como for, o que me causa este
mal estar? Mas que achaque é este? E que ruído de motor abala o céu que me faz
levantar o queixo? Ora, uma nave a parecer-se com um bombardeiro! E como vai
alto! Porém, a maior surpresa dá-se quando, ao erguer a cabeça, ouço as vértebras ranger! Queres ver que te
vais desconjuntar? Sim, porque os joelhos também não se mostram muito firmes…E
agora? O que se passa? A que se deve esta súbita e alarmante sirene a propagar-se
pelo ar? E ao que leva o coração bater assim, tão
desenfreadamente, como se fosse sujeito a um esforço sobre-humano?
O certo, é que daí a instantes não evito conter o
horror ao deparar com umas quantas aves a caírem como pedras ao chão, dissipando-se logo de seguida em fumo! Nem
deixar de estremecer ante a visão de variados
animais ardendo em chamas como tochas de fogo, procurando saciar a sede numa lava
de água e lama! E que dizer do cardume de peixes, desprovidos de escamas e com
as barbatanas esfarrapadas? A intentarem saltar para fora daquele magma,
entretanto, prestes a chegar-me aos pés? Sim, o que se tornara suscetível de ocorrer
num dia indeterminado, aconteceu hoje: a contaminação do ar, das águas e da
terra; das pedras e plantas; dos homens e animais. E dos poros, fendas, nervos,
sulcos e veias…
Eu próprio, de costas espalmadas contra um tronco de árvore, que
dúvida tenho em haver sido já contagiado? E diga-me qual o prognóstico, doutor!
O que devo esperar do futuro? Ser carbonizado como uma planta lavrada pelo
fogo? Ora, deixe-se de evasivas e responda-me: sim ou não? Será que me restará
alguma saída?
E por que não a súplica de um socorro que ninguém ouve?
Ou um grito que vá pelo ar e faça alguém dar por mim? Para desatar este nó a
asfixiar-me a garganta; limpar este suor que me inunda o corpo; afagar-me as
pálpebras enquanto fecho os olhos… E por que demoram a trazer-me a garrafa de
oxigénio e uma máscara? E se contar os meus dedos, será que corresponde ao número
com que nasci? Tanto dos pés como das mãos! E o meu rosto? Ora, mostrem-me depressa
um espelho que quero ver como estou! O quê?! Uma borbulha a mais?! E quem
poderá assegurar-me que não venha a crescer até estourar de vez como uma bomba?
Ó senhora enfermeira, será que devo preparar-me para morrer? Mas ser socorrido
com remendos, pingos de cola, fios de cabelo e de náilon; gotas de óleo, pinceladas
de tinta e de verniz; arames e tubos, isso também não. Nem tão pouco manter-me aqui
vivo para abrir covas destinadas ás vítimas da central de extermínio de
Almaraz.
E quanto me custa, findo este pesadelo, ter que desmontar
a tenda, passar a cara por água e abalar!
Lumiar, Lisboa, 15 de fevereiro de 2017