Tempos do demónio se anjos houvesse!
E
chego a Poveda de la Sierra onde me albergo
por duas noites. A casa rural do João, homem pequeno, sempre a rabiar do balcão
para as mesas do bar e da esplanada, comboio alfa sem paragem na maior parte da
estações, que dois dedos de conversa com um cliente, são euros perdidos… Mas talvez
a nota mais negativa que atribuo ao João se deva à falta de uma série de objetos bem
corriqueiros e imprescindíveis na
cozinha. Como uma faca de serrilha, guardanapos, uma tábua de mesa, uma
frigideira e o saca-rolhas. Deste modo, o João não passa de um prato sem
tempero! O João é uma canha mal tirada! O João é uma lotaria sem terminação! O
João só sabe dizer hola e raspar-se
para outro cliente a quem só sabe dizer
hola! E eu quando largar a casa rural,
pago-lhe e pisgo-me sem lhe dizer adeus. Despacho-o à velocidade do som, que a
galinha é dos dois e vamos ver qual de nós apanha os ovos… E lá volta ele atrás em acelerada maratona para levar o
pano de limpeza à sua mulher… Ora, que tropece, se esfole, enfie um pé no balde
da esfregona, esmurre o nariz na tabuleta a indicar o WC, caia na valeta, tudo
de pior para o João! E não é que, ao embirrar com gente assim, às vezes até sou
como ela? Ou pior, quando faço questão em sê-lo!
Sim. Mas é provável que hoje
tenha acordado com a cabeça debaixo do braço e um dedo do pé preso entre os
dentes. Que chegasse a espumar pela boca e a grunhir com qualquer sonho. Que tivesse
sido mesmo objeto de uma outra prenhez, reincarnando, por um instante, um
pequeno monstro. E tudo sem dar por isso! O certo é que hoje acordei a olhar de
sobrolho carregado para o mundo, coisa que, caso queira, posso alterar: “Ei, amigo João, e quer fazer o favor
de me indicar um trilho para um pequeno circuito pedestre ? Está-me a dizer por
ali? Pois muito bem. Obrigado. Então lá
vou eu!” E o João ainda há de ser mais prestável do que aparenta! O trabalho é
que o mata! De resto, bastam as suas fundas olheiras para espelharem as poucas
horas dormidas e quanto o trabalho lhe pesa, com a ida matinal ao mercado para
se abastecer; o serviço de mesa, as encomendas, a contabilidade diária; o
atendimento dos telefonemas, a limpeza e as arrumações, que a mulher não chega
para tudo… Quantas atletas há a perderem tantas calorias diárias como ele? Por
mim, até se justificaria que andasse com um equipamento desportivo e os
clientes não regateassem, de quando em quando, uma salva de palmas, senão mesmo
a atribuição de uma taça recebida em cima de um banco rústico improvisado de
pódio. Sim, só o João está à altura de substituir o João. Mais ninguém! Tiro-lhe
o chapéu e, acabada a minha estada aqui hei de expressar com um caloroso abraço
quanto foi gratificante conhecê-lo não apenas no seu empenho irrepreensível com
o cliente como enquanto pessoa.
Mas
vamos então pelo trilho afora, como quem penetra num documentário sobre a
natureza da National Geographic. Uma
paisagem onde o Tejo, aqui e ali sobressai, retalhado pela vegetação que o
bordeja em tom de verde gelatina transparente, quando não acaba mesmo por
desaparecer, camuflado pelo arvoredo ou qualquer relevo mais saliente, perdendo
eu a partir daí o seu rasto…. Mas é ao atingir um dado ponto que me interrogo
sobre a minha progressão, quando o trilho interceta uma área um pouco pedregosa,
onde se desenha uma profusão de caminhos que sobem ou descem em várias
direções...
E aí o que fazer? Fosse bicho e não me interrogava. Que havia de
farejar um ou outro cheiro. Ler a impressão de uma unha no chão, o rasto de uma
cauda, uma pena de ave ou pelo de animal que fosse… E sempre haveria de
reencontrar uma pista sem me emaranhar nalgum labirinto… O rio! O rio! Ou antes,
é a perceção que ele corre logo ali adiante, que me anima a descer… E mais
ainda ao deparar, ó quanto afortunado sou, com uma pequena seta indicando o Salto de Poveda, que sei situar-se nas
imediações da casa rural. Uma queda de água sem as cores saturadas como os
postais a ilustram, nem o impacto das explosões de espuma, o estrondo da precipitação…
Nada. Ou antes, pouca coisa para quem surpreende o Salto fora da época dos maiores caudais.. Que uma porção de baldes
de água a resvalar pela parede rochosa, não deslumbra os forasteiros, optando
por fazer mais olhinhos para as selfis com o Salto de Poveda como um cenário pouco mais do que mudo. Mas por
mim, que me bastam os espelhos para me retratar, o me atrai é a rapariga que pinta
uma aguarela, tornando a cascata mais torrencial do que se mostra, opção de que
mais gosto. E soubesse do ofício, quem a pintava era eu, com o cabelo revolto e
verde, talvez debruçada sobre a ponte de corda que se suspende a dois passos
daqui…
E porque
tão de súbito me deu em pensar nos troncos, quais rebanhos de madeira levados
pelos gancheros rio abaixo a partir
desta zona, até Toledo, Aranguez? Homens com mãos de ferro, tal como os ganchos
que na extremidade das varas ora picavam ora puxavam para si os troncos, não
fossem alguns desatinar com o turbilhão das águas e deixarem-se encalhados lá
atrás… Não pararem de redemoinhar sobre si ou mesmo começarem a trepar, como
animados de vida, sabe-se lá, tresmalhados, por qualquer das margens acima! Homens
do demónio, se anjos houvesse. Em constante e forçado equilíbrio, de pé, sobre
os troncos atados entre si em improvisadas jangadas, que um abrupto declive de
água, um rápido mais impetuoso, num ápice tudo desconjuntava contra uma fraga. E
quanta ousadia afogada nas águas por aqueles que não evitaram rasgar as carnes
nas farpas dos pedregulhos? Sucumbirem nos poços mais negros e fundos por tampouco
saberem dar uma braçada? Quantas lágrimas ao relento nunca vistas? Quantos
sonhos submersos presentes na estátua do ganchero
implantada em Poveda de Sierra? O que
me pareceu ser, à primeira vez que por aqui passei, um pastor sem gado ou um
campino sem manada! E só depois acabar por reconhecê-lo como um jangadeiro em
tempos também vividos pelos rios Zêzere e Tejo abaixo!
Parque-Expo, 1 de
março 2017