quarta-feira, 20 de setembro de 2017

CRÓNICA DO TEJO ( VINTE E CINCO - D)



Cada um vagueia como lhe apraz

Fora de qualquer roteiro de interesse paisagístico ou patrimonial, não vejo que forasteiro possa ser tentado a conhecer este Pueblo. Menos ainda a hospedar-se na casa rural onde aceitei abancar por duas noites…. Nenhum comum e mortal turista, estou certo, haveria de permanecer aqui por mais tempo do que o ocupado em pôr-se ao fresco quanto antes, em busca de um lugar idealizado sem qualquer parecença com este.
Uma localidade habitada, quase desértica, sem nenhum menu apelativo arquitetónico, salvo o de uma igreja, da qual já ouvi o sino, vezes demais para o meu gosto. As igrejas, umas das maiores tecedeiras de mentiras ao ludibriar os homens com a ideia da vida eterna! Mas será que a daqui é suficientemente chamativa  para atrair os aficionados da arte e arquitetura sacra? Duvido, só para contento dos devotos residentes. De resto, nenhum sonho de viagem faz passar por estas bandas qualquer viajante. Só, talvez, um nómada cigano, um angariador comercial, um migrante de regresso à terra pela ocasião do natal ou duma festa tradicional; um foragido à polícia ou um viandante como eu, com sonhos de pequena metragem projetados no enganoso e permeável ecrã da vida; o que se desloca quase sempre por rotas nem sempre precisas e quantas vezes estranho ao compasso dos ponteiros do tempo.
Mas cada um vagueia como lhe apraz. Mesmo que acabe por esbarrar num beco sem saída, obrigando-se a uma marcha atrás. E depois? Ora, logo se vê. O que nada surpreende é não haver um único alojado na casa rural para além de mim, embora - sem fantasmas - por mais do que uma vez me parecesse ouvir um respirar vindo não sei donde…Talvez da parede nascente do hall de entrada, com uma forquilha de ferro a fazer de cabide junto dum calendário de parede de 1935, ao qual nunca foi arrancado uma única folha. E da foto emoldurada, bem antiga, a preto e branco, documentando um pequeno grupo de homens em pé, de copo na mão e umas quantas mulheres sentadas na erva, já dourada pelo sol, exibindo cada qual um cacho de uvas. Uma clara celebração às vindimas, mas já corrompida por uma ou outra mancha de bolor irremovível, esbatendo contornos, detalhes e os tons escuros que avivavam a imagem dotando-a de contraste.
Bem ao contrário do estado de saúde de outra foto, exposta no vão da escada, retratando uma mulher. Certa jovem, com um vestido ocultando os pés, e tão rodado como os abat-jours da tia Mimi que, em criança, me levou a supor serem capazes de levantar voo até ao céu como balões são-joaninos! 
Talvez seja o leque, seguro entre os dedos até um pouco abaixo da cintura, o elemento que concorra para acentuar a elegância feminina. Tanto ou mais ainda que o farto laçarote rendilhado, cintando o pescoço e a cair-lhe sobre o peito. Mas para além da indumentária solene, condizente com a presença da clássica coluna quadrangular, ornada de motivos florais é, sobretudo, a altivez da pose a conferir à captação fotográfica o poder mágico-alquímico de cristalizar aquele instante para toda a eternidade. 
Através de uma breve pausa, a que foi ontem, corresponde ao que mostra ser agora e seguramente ad aeternum. Como se distintos tempos verbais se tornassem conjugáveis num só, envolvendo aquele retrato de mulher para toda a vida. Ou aquela mulher do retrato? Sem rejuvenescer nem envelhecer um dia que seja. E, sobretudo, estranha à morte! 
Mas como quem repentinamente sacode de si o pó que o próprio levanta do chão, bem depressa me deixo destes ocos devaneios… O que me absorve é ouvir, de novo, este respirar de há pouco, sem especificar de onde vem. Agora,  será que não sou o único humano aqui? Pois não! 
Eis o que depreendo ao deparar com a volumosa cabeça do Manolo meia dentro do postigo da porta da rua. E o que faz ele? Ora - explica -  a envernizar a entrada, tarefa incumbida pelo dono da casa rural, à ordem de quem, afinal, trabalha! Tudo bem! De tratorista, o Manolo, passara, episodicamente e sem aviso prévio, ao papel de agente informador, tornando-me no objeto da sua investigação! Quem sou ou aparento ser? A que me dedico? Será que andarei a tramar algo por estes lados? O quê? E agirei sozinho ou manterei ligações? Neste caso, com quem? E de que natureza são? 
Vamos, tire-se quanto antes uma conclusão definitiva sobre o meu tipo de pessoa e, especialmente, o que me move! Afinal, quem se furta à catalogação, dispensa um rótulo, evita a sua identidade para além da que consta no simples cartão de cidadão? Deste modo, revele-se quem é o estrangeiro, que o patrão - presumo - não tolera is sem pontos, nem fechaduras a que faltem as chaves.
E quase mordo a língua quando evito dizer ao Manolo para deixar de procurar saber mais do que eu próprio sei da minha pessoa. A verdade é que, mesmo a viver paredes-meias comigo, não haveria de me conhecer melhor! Às vezes até chego a pensar que não passo de algum sonho desgarrado de mim mesmo. Como uma ave que, batendo as asas, não mais acha a sombra, o abrigo, o fruto, o ninho da árvore no qual nasceu. Daí, nem sempre atine com o mundo de que faço parte. Mas será que me disporia, alguma vez, a confidenciar ao Manolo tudo isto? O tanas! Sobretudo no momento em que, com algum desassossego, começo a ouvir novamente o respirar de há pouco.Talvez ainda mais de perto…direi mesmo demasiado próximo, a encher-me o ouvido…. Não, não, como pude cair na hipótese ilusória deste espaço ser provido de qualquer respiração, quando a que sempre ouvi é exclusivamente minha? Pertence-me tanto quanto as minhas fossas nasais, a boca e o fole do meu pulmão. 
Entretanto, o que fazer? Trepar, degrau a degrau, pela escadaria que me conduz ao quarto, ou empurrar a porta de ferro gradeada, a partir da qual se acumula num amplo compartimento, um incontável número de velhas alfaias: arados, trilhos, albardas, gadanhas, tulhas, foices e um bebedouro para bestas, em pedra. E ainda um jogo de matraquilhos bem perros, de tão enferrujados, com meia dúzia de bolas à disposição de quem  queira medir-se com um adversário. No meu caso, comigo mesmo!

 
                                                                                                         Lisboa, Lumiar, setembro,2017