sexta-feira, 25 de novembro de 2016

E FAÇA EU BOA VIAGEM



Balanço entre ir ou não! E, se for, quando? Para o mês que vem? Amanhã? Mas porque não já? O quase paralítico do meu vizinho  defronte, ainda está para assomar à janela e ficar a ver o dia  a passar pela rua, sem trazer nada de novo! E eu aqui, como a olhar para um ecrã vazio à espera da projeção tardia de um filme! Como irrita! Mas quando é que me decido a fazer as malas, quando? E quais malas, se tudo quanto preciso é de encher um saco com roupa, umas tralhas, e pôr-me na alheta… 




Entretanto, o Citro, estacionado lá em baixo, parece ter acabado de revirar as óticas para o vão da minha janela no segundo andar.  Só me falta ver o porta-bagagens a abrir-se, e eu à volta dele! O pior é, ao continuar a ver-me na rua, nunca mais sair...  Apesar de não terem sido poucas as viagens que tenho empreendido dentro de casa. Para tal, basta distrair-me! Sonhar com um sonho, e lá vou eu adiante!... Raras vezes por caminhos que já conheço, mas por outros, que pouca ideia faço como sejam! O meu interesse particular pelo ignoto futuro a sobrepor-se  ao meu passado déja vu! Nada a fazer. Fiz-me assim, e não posso voltar para trás!


Por um instante, olho para a manhã que cai, suave, roçando a frontaria dos prédios, refrescando-me a cabeça reclinada para o passeio, lá em baixo... Sim, a rua está cheia da manhã! E eis que o meu vizinho do outro lado, faz a sua aparição. É um relógio. Não de cuco! Mas de um aceno imediato, dirigido a mim que, como um tiro, atravessa a largura da rua, obrigando-me com algum esforço, a devolver-lhe a saudação. Sorri, e sorrio como quem mete uma moeda numa máquina da sorte e não sai nada. Porque logo depois, o que cada um faz, é olhar: ele para o lado poente da rua; eu, ora para nascente, ora para o céu, cada vez mais luminoso e sem uma nuvem.  

Nenhuma dúvida! Espera-se bom tempo, e não seria má ideia que desse um empurrão em mim próprio, fosse fazer o saco, e daqui a uma hora estivesse a rodar a chave da ignição do Citro que, nesta altura, mantém os faróis orientados na direção da porta do meu prédio, com ar - imagino -  de quem perdeu alguma guerra. Sim, o cinzento não lhe cai nada bem. Desde o primeiro momento em que o trouxe, novo, em folha,  do stande. Seja em que estação do ano for, o cinzento é uma cor que me leva sempre a pensar em como beneficiaria ser alterada para outro tom!




Mas que raio! Onde é que eu pus as  t-shirts    do lobo estampado, a uivar enganosamente à lua cheia e a da árvore solitária everdescendo no meio do deserto? Ora, ali estão: na corda bamba da roupa da varanda de trás, juntamente com não sei quantos pares de peúgas; umas calças de ganga, o blusão a que não faltam bolsos, sequer em cima dos ombros… Quase toda a roupa que preciso para encher o saco, como bandeiras desfraldadas ao vento num dia de festa de um lugar campónio, a que não falta sequer  um par de ténis já enxutos! E quem sabe se um dia não virei mesmo a pendurar no arame da roupa o par de óculos de sol, bastando para tal deixar-me enlouquecer! 


E do que mais preciso? O estojo da higiene, o telelé desligado, uns enlatados, as indispensáveis pastilhas rennie, não posso esquecer o corta-unhas e a faca de mato, um objeto chama outro; um bloco de notas, quero lá saber da máquina fotográfica e dos binóculos; o cartão multibanco, o michelin,  os documentos, ah!, o teu retrato tirado há quantos anos atrás, sim,  tu, emoldurada num passepartout, mas virada do avesso, para evitar a tentação de te fitar a toda a hora; tu, sempre tu, com a blusa de seda, cor de rosa, que te ofereci… E, por fim, a tenda de campismo encaixotada no fundo da despensa…  Já não volto atrás. Vou partir mesmo, e quanto antes.


Mal ponho o pé na rua, arrastando a bagagem, logo os faróis dianteiros do Citro, parecem pestanejar, brilhando como se tivessem acabado de ser esfregados com um limpa vidros. E poderia quebrar, agora, o hábito de me limitar apenas a acenar ao velho a partir da janela, saudando-o com um sonoro bom dia, aqui, da rua  Mas nunca tendo cumprimentado até hoje nenhum vizinho, salvo a Alice do quinto esquerdo, não quero criar nenhuma exceção. Sim. Bastou-me olhá-lo de soslaio, para imaginar o velho, a morder-se de curiosidade em saber para onde vou…


Mas pode lá ser! De repente, de uma ponta à outra da rua, rara é a soleira da porta, peitoril de janela ou varanda em que não surpreenda um vizinho, quase sempre reformado ou no desemprego, deixando escapar uns calorosos bravos, vivas e berros esfuziantes, à minha iminente partida!


Uma espontânea e inusitada celebração festiva, sem estampidos de foguetes, é certo, fanfarra de bombeiros, desfile hípico ou de ranchos folclóricos, mas a que não faltam as timbradas variações sopradas pelo clarinete do filho do farmacêutico, que deve ter faltado às aulas, bem como nuvens e nuvens multicolores de pétalas de flores, chuva de confetis, e feéricas serpentinas; e muitos, imensos balões de s. joão pelo ar, criando uma certa confusão entre os pombos implantados nos beirais, não menos apreensivos quanto eu, face a tão  transbordante euforia, rompendo com a costumaz pasmaceira da rua... 

E quem, afinal, poderia estar mais à altura do que eu de tamanho regozijo? Só visto: eu apeado no meio do asfalto, a agradecer, curvado como um chinês, a avalanche das gritadas ovações que quase me subterram, tais como:" põe-te a milhas e não voltes"; "já devias lá estar"; e " olha se te acontece como ao outro que!..." E agora, com a maior franqueza: fosse vaidoso, e babava-me; fosse de chorar por dá cá aquela palha e, em pouco tempo, haveria de tornar o leito seco desta rua num impetuoso curso de água! Só contando com as minhas lágrimas! Mais nada!


E é ao cabo de agitados e sentidos adeuses que, por fim, me decido a entrar no citro,  acelerar a fundo em ponto morto, por forma a provocar  aquele estridente brum, brrum, brrrum, tão próprio  dos bólides de alta competição, prestes a largarem da linha de partida! Brum, brrum, brrrum, como se o motor, a todo o instante, pudesse escapulir-se pelo tubo de escape; Brum, brrum, brrrum, à tão esfuziante e inesperada receção dos meus vizinhos; brum, brrum, brrrum,  ás sardinheiras vermelhas da minha varanda, que me  regalam e arregalam os olhos da alma; brum, brrum, brrrum, á menina do balcão do cabeleireiro, que ainda não a vi hoje; brum, brrum, brrrum, à sorte grande deste banho de alegria a cair-me em cima.


E é assim que, de seguida, me deixo rolar, brandamente, ao volante do Citro até atingir o cruzamento, onde travo para olhar pelo retrovisor. E o que entrevejo? Não a rua de há instantes, plenamente animada de vivas, ovações e gritos; daquele esfuziante movimento, de gente e mais gente, mas antes o lugar de estar tudo  invariavelmente na mesma, como quando a surpreendo quer ao entrar, quer ao sair de casa, sem que haja alguém a perguntar-me, então como vai!... 


Ora, eu estou sempre bem, obrigado! E melhor ainda, ao pensar no dia que fará à tarde: quente como eu gosto, e longe da rua onde moro, com aquele subdesenvolvido canteiro, um arbusto só regado pelas chuvas, sem ter florido uma só vez; e uma série de candeeiros que nunca me deu para contar, mesmo quando à janela, nada me ocorre sobre o que possa fazer...


Enfim, a minha rua de sempre, deixada já para trás, ponto final, cai o pano, adeus!... E faça eu boa viagem!

                                                        
                                                                                      Lisboa, Lumiar, Novembro,2016