Balanço
entre ir ou não! E, se for, quando? Para o mês que vem? Amanhã? Mas porque não
já? O quase paralítico do meu vizinho defronte, ainda está para assomar à
janela e ficar a ver o dia a passar pela rua, sem trazer nada de novo! E eu aqui, como
a olhar para um ecrã vazio à espera da projeção tardia de um filme! Como irrita! Mas
quando é que me decido a fazer as malas, quando? E quais malas, se tudo quanto
preciso é de encher um saco com roupa, umas tralhas, e pôr-me na alheta…
Entretanto,
o Citro, estacionado lá em baixo, parece ter acabado de revirar as óticas para
o vão da minha janela no segundo andar. Só
me falta ver o porta-bagagens a abrir-se, e eu à volta dele! O pior é, ao continuar
a ver-me na rua, nunca mais sair... Apesar de não terem sido poucas as
viagens que tenho empreendido dentro de casa. Para tal, basta distrair-me! Sonhar
com um sonho, e lá vou eu adiante!... Raras vezes por caminhos que já conheço, mas por
outros, que pouca ideia faço como sejam! O meu interesse particular pelo ignoto futuro a sobrepor-se
ao meu passado déja vu! Nada a fazer. Fiz-me assim, e não posso voltar para
trás!
Por
um instante, olho para a manhã que cai, suave, roçando a frontaria dos prédios,
refrescando-me a cabeça reclinada para o passeio, lá em baixo... Sim, a rua está cheia da
manhã! E eis que o meu vizinho do outro lado, faz a sua aparição. É um relógio. Não
de cuco! Mas de um aceno imediato, dirigido a mim que, como um tiro,
atravessa a largura da rua, obrigando-me com algum esforço, a devolver-lhe a
saudação. Sorri, e sorrio como quem mete uma moeda numa máquina da sorte e não
sai nada. Porque logo depois, o que cada um faz, é olhar: ele para o lado poente
da rua; eu, ora para nascente, ora para o céu, cada vez mais luminoso e sem uma
nuvem.
Nenhuma dúvida! Espera-se bom
tempo, e não seria má ideia que desse um empurrão em mim próprio, fosse fazer o
saco, e daqui a uma hora estivesse a rodar a chave da ignição do Citro que, nesta
altura, mantém os faróis orientados na direção da porta do meu prédio, com ar -
imagino - de quem perdeu alguma guerra.
Sim, o cinzento não lhe cai nada bem. Desde o primeiro momento em que o trouxe,
novo, em folha, do stande. Seja em que
estação do ano for, o cinzento é uma
cor que me leva sempre a pensar em
como beneficiaria ser alterada para outro tom!
Mas
que raio! Onde é que eu pus as t-shirts do lobo estampado, a uivar enganosamente à lua cheia e a da árvore solitária
everdescendo no meio do deserto? Ora, ali estão: na corda bamba da roupa da
varanda de trás, juntamente com não sei quantos pares de peúgas;
umas calças de ganga, o blusão a que não faltam bolsos, sequer em cima dos
ombros… Quase toda a roupa que preciso para encher o saco, como bandeiras
desfraldadas ao vento num dia de festa de um lugar campónio, a que não falta
sequer um par de ténis já enxutos! E
quem sabe se um dia não virei mesmo a pendurar no arame da roupa o par de
óculos de sol, bastando para tal deixar-me enlouquecer!
E do que mais preciso?
O estojo da higiene, o telelé desligado, uns enlatados, as indispensáveis pastilhas
rennie, não posso esquecer o corta-unhas e a faca de mato, um objeto chama
outro; um bloco de notas, quero lá saber da máquina fotográfica e dos binóculos;
o cartão multibanco, o michelin, os
documentos, ah!, o teu retrato tirado há
quantos anos atrás, sim, tu, emoldurada
num passepartout, mas virada do avesso, para evitar a tentação de te fitar a
toda a hora; tu, sempre tu, com a blusa de seda, cor de rosa, que te ofereci… E,
por fim, a tenda de campismo encaixotada no fundo da despensa… Já não volto atrás. Vou partir mesmo, e quanto
antes.
Mal ponho o pé na rua, arrastando a bagagem, logo os faróis dianteiros do Citro, parecem pestanejar, brilhando como se tivessem acabado de ser esfregados com um limpa vidros. E poderia quebrar, agora, o hábito de me limitar apenas a acenar ao velho a partir da janela, saudando-o com um sonoro bom dia, aqui, da rua Mas nunca tendo cumprimentado até hoje nenhum vizinho, salvo a Alice do quinto esquerdo, não quero criar nenhuma exceção. Sim. Bastou-me olhá-lo de soslaio, para imaginar o velho, a morder-se de curiosidade em saber para onde vou…
Mas pode
lá ser! De repente, de uma ponta à outra da rua, rara é a soleira da porta, peitoril
de janela ou varanda em que não surpreenda um vizinho, quase sempre reformado
ou no desemprego, deixando escapar uns calorosos bravos, vivas e berros
esfuziantes, à minha iminente partida!
Uma
espontânea e inusitada celebração festiva, sem estampidos de foguetes, é certo,
fanfarra de bombeiros, desfile hípico ou de ranchos folclóricos, mas a que não
faltam as timbradas variações sopradas pelo clarinete do filho do farmacêutico,
que deve ter faltado às aulas, bem como nuvens e nuvens multicolores de pétalas
de flores, chuva de confetis, e feéricas serpentinas; e muitos, imensos balões
de s. joão pelo ar, criando uma certa confusão entre os pombos implantados nos
beirais, não menos apreensivos quanto eu, face a tão transbordante euforia, rompendo com a costumaz
pasmaceira da rua...
E quem, afinal, poderia estar mais à altura do que eu de
tamanho regozijo? Só visto: eu apeado no meio do asfalto, a agradecer, curvado
como um chinês, a avalanche das gritadas ovações que quase me subterram, tais
como:" põe-te a milhas e não voltes"; "já devias lá estar";
e " olha se te acontece como ao outro que!..." E agora, com a maior
franqueza: fosse vaidoso, e babava-me; fosse de chorar por dá cá aquela palha
e, em pouco tempo, haveria de tornar o leito seco desta rua num impetuoso curso
de água! Só contando com as minhas lágrimas! Mais nada!
E é ao cabo de agitados e sentidos adeuses que,
por fim, me decido a entrar no citro,
acelerar a fundo em ponto morto, por forma a provocar aquele estridente brum, brrum, brrrum, tão
próprio dos bólides de alta competição,
prestes a largarem da linha de partida! Brum, brrum, brrrum, como se o motor, a
todo o instante, pudesse escapulir-se pelo tubo de escape; Brum, brrum, brrrum,
à tão esfuziante e inesperada receção dos meus vizinhos; brum, brrum,
brrrum, ás sardinheiras vermelhas da
minha varanda, que me regalam e arregalam
os olhos da alma; brum, brrum, brrrum, á menina do balcão do cabeleireiro, que ainda
não a vi hoje; brum, brrum, brrrum, à sorte grande deste banho de alegria a
cair-me em cima.
E
é assim que, de seguida, me deixo rolar, brandamente, ao volante do Citro até atingir o
cruzamento, onde travo para olhar pelo retrovisor. E o que entrevejo? Não a rua
de há instantes, plenamente animada de vivas, ovações e gritos; daquele
esfuziante movimento, de gente e mais gente, mas antes o lugar de estar tudo invariavelmente na mesma, como quando a surpreendo quer ao entrar, quer ao sair de casa, sem que haja alguém a
perguntar-me, então como vai!...
Ora,
eu estou sempre bem, obrigado! E melhor ainda, ao pensar no dia que fará à
tarde: quente como eu gosto, e longe da rua onde moro, com aquele
subdesenvolvido canteiro, um arbusto só regado pelas chuvas, sem ter
florido uma só vez; e uma série de candeeiros que nunca me deu para contar, mesmo quando à janela, nada me ocorre sobre o que possa fazer...
Enfim,
a minha rua de sempre, deixada já para trás, ponto final, cai o pano, adeus!...
E faça eu boa viagem!
Lisboa, Lumiar, Novembro,2016
afinal o nosso homem está vivo, ainda escreve em novembro de 2016! ou melhor, viaja na escrita e escreve na viagem... para quem não conhece o RM, talvez este fosse o melhor cartão de apresentação. de forma aconchegada, quase confessional, está aqui quase tudo! o sonhador, o viajante, o visionário, o irrequieto, o decidido indeciso, o qb de louco, o que inventa histórias para que a vida tenha história… venham mais destas que o povo agradece.
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