segunda-feira, 13 de março de 2017

CRÓNICA DO TEJO (VINTE E DOIS)



Antes andar com o sol na cabeça e a sede na garganta!


Que ponte não me incita à paragem, por um breve instante, para baixar os olhos ao fundo? E quantas vezes deixo de voar com as asas dos braços para qualquer lugar em redor? Mas por pouco tempo, que a ideia da vadiagem pelo rio acima persegue-me. Mesmo com o sol como está, de cegar, sugar lágrimas, curtir a pele… A caldeira da Meseta no verão - um sufoco - bem capaz de atear o fogo da alma como o faz ao mais desprevenido arbusto ou árvore. Mas antes assim do que ficar a pensar na comemoração da velhice que, calculo, terá lugar já para a semana; ou fugir ao sol e fechar-me sozinho com a memória  dos brinquedos mal iluminados do meu quarto; ou ainda fazer de pobre estrela apagada contentando-se com o luzir de um punhado de estrelas na mão aberta de uma fada. Um manguito! Era o que faltava! Antes andar com o sol na cabeça e a sede na garganta! A ausência do mínimo ruído que não seja, de quando em quando, o do motor de uma viatura, o pedalar ronceiro de alguém numa bicicleta a passar pela ponte; uma mosca a zumbir no ar.                          
A visão da água parada que inquieta, e sossegada acentua ainda mais esta estranheza ao julgar sentir a pressão de um polegar nas costas. Como a querer empurrar-me! E não é mesmo? O dedo de uma velha à distância de um passo de mim! Mas não de carne e osso como se possa imaginar. Só constituída por folhas azuladas de zinco, pedaços e pedaços de lata a servirem de remendos, esburacados alguns para a suspensão de cavilhas e porcas de parafusos; e, à cintura, igualmente penduradas malhas perfuradas a par de compassos de ferro, um relógio - outro entre quantos sem corda? -, uma argola onde se prendem enferrujadas chaves destinadas a fechaduras de portões largos de quintas antigas, cavalariças, celeiros, pombais palacianos, portas grossamente almofadadas de mansões em ruína… Vá adivinhar! E a par destas, entre outras pendurezas, uma ventoinha implantada nas suas costas. O peito, os braços, as pernas até aos joelhos, similares às peças de uma armadura medieva, ostentando em cada ombro, ao que julgo, uma asa aí geminada, mas sem me parecer capaz de locomover o mais pequeno peso, procurando, talvez, expressar  alguma mensagem simbólica. Mas qual? No seu conjunto, porém, o detalhe que causa maior surpresa são os olhos salientes e tubulares, rentes à pala de uma boina metálica, e sobre as virilhas, uma pequena coroa de espinhos. À imitação dos peixes, aqui e ali, camadas de escamas... Um mostrengo baixo, nada adamastor, com uma figura feminina a resvalar para o masculino, como se tivesse sido criada num parque de ferro velho pelas mãos de um artista surreal, destinada a figurar num cenário de terror. Mas o meu espanto, e sob o risco de cair com alguma síncope letal, acontece quando ouço perguntar à velha, voltada para mim: “ Então, já me reconheces?” E é neste instante que fico tão petrificado e estático como a ponte. E como aquela estrutura totalmente metálica, podia mostrar-se com uma boca, bastante enrugada, de carne e osso?! Mas a surpresa maior, é quando, acabo por identificar a voz da minha avó  a que cheguei, em  moço, a ir ao seu enterro. Ora bem, trocaram-na. Foi o que sucedeu! E pudesse imaginar isso! Roça o hediondo… E quando ela insiste: “Então, não me respondes?” E logo, acrescentando: “ Como se eu ignorasse que as memórias da infância ainda tardam a envelhecer mais do que eu!” Sim, sei quem é - digo-lhe, sem ver como a tão súbita falta de ar possa ser suprimida; se com a inspiração pelo peito, se pelo abdómen! “ Sei, eu sei, é a que foi a minha avó! A que fui?! Ora essa, a que sou! E vejo como continuas a mostrar-te desatinado. Será que esperas que te obrigue a repetir esta verdade comigo? Diz: “ É a minha avó” Digo: “ É a minha avó” E como se tivesse acabado de ouvir o seu próprio eco a chamá-la, logo a minha velha avó, com a ventoinha acionada, e uns reduzidos tubos propulsores implantados nos pés, repentinamente se esgueirou pelo ar. Mas que porra! O que terá este pesadelo a ver com uns fragmentados sonhos que alimentam o meu viajar? E pergunto-me se desta vez não terá sido o sol a atacar-me com uns raios atómicos!... Mas não vou longe que, de imediato, sou sobressaltado, com a reaparição da velha. Da que é minha avó, a fazer badalar os sinos que traz, atados à cintura. E ainda aos curtos, mas elétricos saltos a estremecer ruidosamente as grossas contas do colar recheadas, talvez, com limalhas de ferro! E as argolas nos tornozelos e as escravas nos pulsos? “Mas diz-me, ó minha avó: “Onde vives?” “Ora, isso é querer saber demais: vivo da água das nuvens, quando o céu não se mostra assim tão liso como hoje; e vivo da sombra que encontro na copa frondosa das árvores; no alto dos campanários partilhando o espaço com as corujas…
olha, às vezes, na galeria de uma mina abandonada. Vivo como calha, mas sempre de atalaia! E eis que acabando de dizer isto, ante a aproximação de uma criatura na ponte, volta a desaparecer, que nem numa cena de ilusionismo! Até, daí a instantes, ressurgir com ar de quem quer dar uma notícia: “ E sabes o que aconteceu aqui, em Puente del Arzobispo? Não fosse a minha memória para os números e dizia-te quantos foram.” E continua: “ Mas isso é o que vale menos… Chegaram os falangistas que os executaram, e fossem provocar mais bocas no fio das pás a abrir covas! Não havia que perder tempo! Então e ainda para lhes facilitar a vida,  como quem diz, a morte, decidiram lança-los para a sepultura flutuante das águas, nessa altura,  bem caudalosa e turbulenta!  E lá foram todos, salvo um de duvidosa memória, mais o cão de um deles que, até ao fim da vida não fez outra coisa do que andar por aí à busca do dono. Rio abaixo. Rio acima Numa e noutra margem! Rosnando às vezes a ninguém que pudesse ver… rosnava só, embora uivasse ás vezes - dizia-se - até ser capaz de se fazer ouvir pelos ouvidos da lua. E não me interrompas, neto, e presta atenção! Nada perguntes!... Qual alcaide?!  Até parece que procuras atear mais ainda os fogos de todo não extintos! E põe-te a andar… já! ”Clama  a minha avó máquina, a cem por cento robotizada!
A que vivia há longo, longo tempo atrás acompanhada por sete gatos e três cães no apartamento partilhado com o meu avô que era asmático! Lembro-me bem!... E com duas caturras estridentes que, mal o viam, punham-se a perfurar-lhe os tímpanos até, ao cabo de um certo tempo, acabar por perdê-los de vez! A minha avó, que poucos anos após dela própria ter nascido, já se mostrava trajada de luto pelo futuro marido,  ainda muito antes de o conhecer na condição de namorado! A minha avó a quem uma vez ouvi dizer: “Ainda hei de comprar uma espingarda e ir-me a esses tordos pretos e vermelhos! Sem deixar de comungar todas as semanas e de colocar-me à  cabeça de  todas as procissões! E sair para a rua, sempre que preciso for a gritar por Arriba Espanha!

Eh, Citro, e quem vai ter um com outro? Mas depressa! Ou achas que fique aqui pregado, à espera da terceira aparição da puta da velha?
                                                                Parque Expo, Lisboa, fevereiro, 2017