Antes andar com o sol na cabeça e a sede na garganta!
Que
ponte não me incita à paragem, por um breve instante, para baixar os olhos ao
fundo? E quantas vezes deixo de voar com as asas dos braços para qualquer lugar
em redor? Mas por pouco tempo, que a ideia da vadiagem pelo rio acima
persegue-me. Mesmo com o sol como está, de cegar, sugar lágrimas, curtir a pele…
A caldeira da Meseta no verão - um sufoco - bem capaz de atear o fogo da alma
como o faz ao mais desprevenido arbusto ou árvore. Mas antes assim do que ficar
a pensar na comemoração da velhice que, calculo, terá lugar já para a semana;
ou fugir ao sol e fechar-me sozinho com a memória dos brinquedos mal iluminados do meu quarto;
ou ainda fazer de pobre estrela apagada contentando-se com o luzir de um
punhado de estrelas na mão aberta de uma fada. Um manguito! Era o que faltava! Antes
andar com o sol na cabeça e a sede na garganta! A ausência do mínimo ruído que não seja, de quando em quando, o do motor de
uma viatura, o pedalar ronceiro de alguém numa bicicleta a passar pela ponte;
uma mosca a zumbir no ar.
A visão
da água parada que inquieta, e sossegada acentua ainda mais esta estranheza ao
julgar sentir a pressão de um polegar nas costas. Como a querer empurrar-me! E não
é mesmo? O dedo de uma velha à distância de um passo de mim! Mas não de carne e
osso como se possa imaginar. Só constituída por folhas azuladas de zinco,
pedaços e pedaços de lata a servirem de remendos, esburacados alguns para a
suspensão de cavilhas e porcas de parafusos; e, à cintura, igualmente penduradas
malhas perfuradas a par de compassos de ferro, um relógio - outro entre quantos
sem corda? -, uma argola onde se prendem enferrujadas chaves destinadas a
fechaduras de portões largos de quintas antigas, cavalariças, celeiros, pombais
palacianos, portas grossamente almofadadas de mansões em ruína… Vá adivinhar! E
a par destas, entre outras pendurezas, uma ventoinha implantada nas suas
costas. O peito, os braços, as pernas até aos joelhos, similares às peças de
uma armadura medieva, ostentando em cada ombro, ao que julgo, uma asa aí
geminada, mas sem me parecer capaz de locomover o mais pequeno peso,
procurando, talvez, expressar alguma mensagem
simbólica. Mas qual? No seu conjunto, porém, o detalhe que causa maior surpresa
são os olhos salientes e tubulares, rentes à pala de uma boina metálica, e
sobre as virilhas, uma pequena coroa de espinhos. À imitação dos peixes, aqui e
ali, camadas de escamas... Um mostrengo baixo, nada adamastor, com uma figura
feminina a resvalar para o masculino, como se tivesse sido criada num parque de
ferro velho pelas mãos de um artista surreal, destinada a figurar num cenário
de terror. Mas o meu espanto, e sob o risco de cair com alguma síncope letal, acontece
quando ouço perguntar à velha, voltada para mim: “ Então, já me reconheces?” E
é neste instante que fico tão petrificado e estático como a ponte. E como
aquela estrutura totalmente metálica, podia mostrar-se com uma boca, bastante
enrugada, de carne e osso?! Mas a surpresa maior, é quando, acabo por identificar
a voz da minha avó a que cheguei, em moço, a ir ao seu enterro. Ora bem,
trocaram-na. Foi o que sucedeu! E pudesse imaginar isso! Roça o hediondo… E
quando ela insiste: “Então, não me respondes?” E logo, acrescentando: “ Como se
eu ignorasse que as memórias da infância ainda tardam a envelhecer mais do que
eu!” Sim, sei quem é - digo-lhe, sem ver como a tão súbita falta de ar possa
ser suprimida; se com a inspiração pelo peito, se pelo abdómen! “ Sei, eu sei,
é a que foi a minha avó! A que fui?! Ora essa, a que sou! E vejo como continuas
a mostrar-te desatinado. Será que esperas que te obrigue a repetir esta verdade
comigo? Diz: “ É a minha avó” Digo: “ É a minha avó” E como se tivesse acabado
de ouvir o seu próprio eco a chamá-la, logo a minha velha avó, com a ventoinha
acionada, e uns reduzidos tubos propulsores implantados nos pés, repentinamente
se esgueirou pelo ar. Mas que porra! O que terá este pesadelo a ver com uns
fragmentados sonhos que alimentam o meu viajar? E pergunto-me se desta vez não
terá sido o sol a atacar-me com uns raios atómicos!... Mas não vou longe que,
de imediato, sou sobressaltado, com a reaparição da velha. Da que é minha avó,
a fazer badalar os sinos que traz, atados à cintura. E ainda aos curtos, mas elétricos
saltos a estremecer ruidosamente as grossas contas do colar recheadas, talvez,
com limalhas de ferro! E as argolas nos tornozelos e as escravas nos pulsos?
“Mas diz-me, ó minha avó: “Onde vives?” “Ora, isso é querer saber demais: vivo
da água das nuvens, quando o céu não se mostra assim tão liso como hoje; e vivo
da sombra que encontro na copa frondosa das árvores; no alto dos campanários
partilhando o espaço com as corujas…
olha, às vezes, na galeria de uma mina abandonada. Vivo como calha, mas sempre de atalaia! E eis que acabando de dizer isto, ante a aproximação de uma criatura na ponte, volta a desaparecer, que nem numa cena de ilusionismo! Até, daí a instantes, ressurgir com ar de quem quer dar uma notícia: “ E sabes o que aconteceu aqui, em Puente del Arzobispo? Não fosse a minha memória para os números e dizia-te quantos foram.” E continua: “ Mas isso é o que vale menos… Chegaram os falangistas que os executaram, e fossem provocar mais bocas no fio das pás a abrir covas! Não havia que perder tempo! Então e ainda para lhes facilitar a vida, como quem diz, a morte, decidiram lança-los para a sepultura flutuante das águas, nessa altura, bem caudalosa e turbulenta! E lá foram todos, salvo um de duvidosa memória, mais o cão de um deles que, até ao fim da vida não fez outra coisa do que andar por aí à busca do dono. Rio abaixo. Rio acima Numa e noutra margem! Rosnando às vezes a ninguém que pudesse ver… rosnava só, embora uivasse ás vezes - dizia-se - até ser capaz de se fazer ouvir pelos ouvidos da lua. E não me interrompas, neto, e presta atenção! Nada perguntes!... Qual alcaide?! Até parece que procuras atear mais ainda os fogos de todo não extintos! E põe-te a andar… já! ”Clama a minha avó máquina, a cem por cento robotizada!
olha, às vezes, na galeria de uma mina abandonada. Vivo como calha, mas sempre de atalaia! E eis que acabando de dizer isto, ante a aproximação de uma criatura na ponte, volta a desaparecer, que nem numa cena de ilusionismo! Até, daí a instantes, ressurgir com ar de quem quer dar uma notícia: “ E sabes o que aconteceu aqui, em Puente del Arzobispo? Não fosse a minha memória para os números e dizia-te quantos foram.” E continua: “ Mas isso é o que vale menos… Chegaram os falangistas que os executaram, e fossem provocar mais bocas no fio das pás a abrir covas! Não havia que perder tempo! Então e ainda para lhes facilitar a vida, como quem diz, a morte, decidiram lança-los para a sepultura flutuante das águas, nessa altura, bem caudalosa e turbulenta! E lá foram todos, salvo um de duvidosa memória, mais o cão de um deles que, até ao fim da vida não fez outra coisa do que andar por aí à busca do dono. Rio abaixo. Rio acima Numa e noutra margem! Rosnando às vezes a ninguém que pudesse ver… rosnava só, embora uivasse ás vezes - dizia-se - até ser capaz de se fazer ouvir pelos ouvidos da lua. E não me interrompas, neto, e presta atenção! Nada perguntes!... Qual alcaide?! Até parece que procuras atear mais ainda os fogos de todo não extintos! E põe-te a andar… já! ”Clama a minha avó máquina, a cem por cento robotizada!
A que
vivia há longo, longo tempo atrás acompanhada por sete gatos e três cães no
apartamento partilhado com o meu avô que era asmático! Lembro-me bem!... E com
duas caturras estridentes que, mal o viam, punham-se a perfurar-lhe os tímpanos
até, ao cabo de um certo tempo, acabar por perdê-los de vez! A minha avó, que
poucos anos após dela própria ter nascido, já se mostrava trajada de luto pelo
futuro marido, ainda muito antes de o
conhecer na condição de namorado! A minha avó a quem uma vez ouvi dizer: “Ainda
hei de comprar uma espingarda e ir-me a esses tordos pretos e vermelhos! Sem
deixar de comungar todas as semanas e de colocar-me à cabeça de todas as procissões! E sair para a rua, sempre
que preciso for a gritar por Arriba Espanha!
Eh,
Citro, e quem vai ter um com outro? Mas depressa! Ou achas que fique aqui pregado, à espera da terceira aparição da puta da velha?