segunda-feira, 7 de agosto de 2017

“O Inquilino”

                                           À amiga Sara Loureiro

Foi a leitura dum poema de Álvaro de Campos que terá concorrido para o suicídio de um compatriota nosso.
Tal como a descoberta da poesia de Afonso Duarte pelo administrador do meu edifício, viria a permitir-lhe redigir,  com  mais esmero, as atas do condomínio.
Quer no primeiro exemplo, deveras trágico, quer no segundo, bem prosaico, é a poesia que acaba por patentear a hipotética e episódica influência  sobre um ou outro leitor.
 E dizer que foi  a releitura  de " O Inquilino" de Carlos de Oliveira que me levou, em certa época, a abandonar o quarto  alugado, mudando-me a mim!



                                                                                                                        Lisboa, Outubro, 2014

Alves Redol

De cigarro na boca, e um pequeno bloco entre as mãos, parece desenhar. Mas não! O que faz, é escrevinhar os recortes dos montes, os penedos graníticos, os atalhos pedregosos, os sucalcos das vides que surpreende a partir de um ponto altaneiro e defronte ao Pinhão. Bem como as eiras, ainda nuas, à espera do momento da debulha e da desfolha;  o pouca-terra arfando, como se fugisse das suas próprias nuvens negras de fumo.
Só que não se confina apenas a escrevinhar o que a sua visão abarca, filtra, compõe, detalha e recria, que os sons também merecem umas linhas escritas no caderno... Como os chilreares alegres e os latidos alvoraçados; os silvos estridentes das sirenes e o badalar timbrado dos sinos; o gemido dos eixos dos carros arrastados pela parelha de bois; o restolhar do rio, redemoinhando por entre as fragas traiçoeiras, capazes de despedaçarem o coração de qualquer mareante.
Porém, e entre todos os sons, o mais eloquente: o das falas humanas, matéria que acabará por constituir o maior alimento na construção da escrita literária de Alves Redol em torno do rio Douro, tal como o havia feito com as estórias narradas pelas gentes avieiras do rio Tejo. (...)
V.F.Xira,Outubro,2014

POEMATOS ( 3 )

Toledo

é noite de verão em toledo cheio de ruas de alfama
e eu devo ser um peregrino sem saber que o sou
caminhando a solo pelas callas pisadas por el greco

a certa altura já cansado dos olhos e de muito andar
procuro nos bolsos a morada do hotel onde me instalei
vendo que a perdi como a mim me perco num instante

e agora sequer a lua cheia me distrai nem o gato
que se esgueira pelo empedrado fora ou a mulher que passa
sorrindo ainda mais que as flores na primavera

nada me satisfaz a não ser a sorte em dar com o hotel
para poder aninhar-me dentro da mala de viagem
esperando que alguém a troque e consigo a leve

para qualquer outro lado como paris casablanca
tóquio veneza lisboa com um bilhete de ida apenas
sem retorno ao ponto de partida de toledo



                                                                                  Agosto,2014


Embarcações

E são as nossas lágrimas que encharcam a cidade alagando tudo, desde as estreitas ruas até às praças mais abertas, onde antigas embarcações celebram a cada dia que passa o pôr do sol. 

Como os botes carregados de frutos e flores perfumadas; as fragatas, cheias de acúcar, pimenta e ervas que se inalam à hora de adormecer; os varinos, sem tripulação alguma ou carga, mas nunca albarroando; os leves catraios balouçando agitados; as canoas de pesca, com os conveses tapeteados de luzentes escamas...

Ou as fulgurantes faluas tripuladas por mulheres de pele cor de rosa que vivem apenas para entrançar os seus longos cabelos:
e depois usá-los como amarras, sempre que um timoneiro ouse repetir a gasta odisseia de penetrar no mar para nele, de novo, se perder.
                                                                                      Lisboa, Agosto,2014

ESTORIETAS ( 4 )

O RX


Primeiro, começou a tossicar; depois perdeu o apetite e emagreceu. Ao fim de pouco tempo, não havia qualquer dúvida quanto ao diagnóstico do Raio X analisado pelo veterinário:  
a inalação, embora passiva, dos consecutivos cigarros queimados pelo seu dono, enquanto preparava a tese de mestrado em Saúde e Meio Ambiente, tinha sido fatal ao seu fiel amigo.
E já era demasiado tarde para trocar o seu lugar de sempre, junto aos pés do fumador, pelo ar livre do quintal. 


                                                                                                                                      Lisboa, Outubro,2014

POEMATOS ( 2 )

        O Peixe do Super
                                          Com aquele ar vítreo 
de quem acaba de chegar 
da arca frigorífica,
que cliente o subtrai 
à bancada repleta de gelo
e o leva para casa?

Ninguém, mesmo quando a mulher 
do super afiança não haver
em qualquer outro mercado, 
a preço de saldo, 
tão mimoso peixe
como aquele desgraçado

Sequer eu, sério amigo 
de todo o peixe,
amanhado e limpo
para assar no forno
elétrico ou na brasa, 
o trago comigo.

Antes lhe aceno 
num sentido adeus
áquele desventurado,
com um olhar ainda 
mais absorto e triste 
do que o meu.

                                                                                    Lisboa, Novembro, 2014

ESTORIETAS (3)




Homem Cauteloso


Era homem cauteloso. Assim, ao iniciar a travessia pedonal, calculou com precisão a enchente da maré por forma a assegurar que o seu retorno ao ponto de partida haveria de efetuar-se antes das águas inundarem por completo o extenso areal.
Só não previu o encontro com aquela alma taurina que, após ter irrompido pelas malhas da cerca, logo, de cornos em riste, investiu contra a sua figura.
Mais tarde, à hora de recolher o gado, não deu o ganadeiro por falta de nenhuma cabeça. Mas quanto ao homem cauteloso, ninguém que o viu dirá o mesmo.
                                                               Lisboa, dezembro,2014

ESTORIETAS ( 2 )



Meinke Paay

Pela ocasião do falecimento do marido, a senhora Meinke Paay, solicitou aos parentes e amigos para dispensarem não só as flores, mas também as lágrimas durante o ato fúnebre.
A verdade, é que apenas um pequeno ramo de tulipas vermelhas acompanhado por um cartão, com uma assinatura de todo ilegível, foi deixado no velório. Quanto a lágrimas, sequer uma, bem como o mais ligeiro soluço!
Acabado o acompanhamento funéreo, e após as devidas saudações aos presentes, logo a senhora Meinke Paay retomou o caminho de casa para cumprir os procedimentos habituais: regar o canteiro; dar a ração ao seu peludo caniche e tomar o chã, com duas ou três bolachas sem sal e outras tantas colheres de compota de framboesa.
 Porém, mal transpôs a cancela do seu quintal, atónita, deparou com o seu caniche, sem um único sopro de vida, jazendo ao pé das margaridas. Podia lá ser!... E como haveria de conter aquele aflitivo desespero, a dor inconsolável de tamanha perda?
Certo é que volvido tanto tempo, bastará balbuciar o nome do caniche a uma vizinha sua, para que a senhora Meinke Paay logo se apresse a embeber num lenço as gotas de orvalho, que afloram aos seus olhos turvando-lhe a visão.


                                                                                                                            Lisboa, Abril, 2015


ESTORIETAS ( 1 )



O Único Erro

Não conseguia voltar-se para lado nenhum… Como se um colete de forças o tivesse manietado. E tampouco sabia onde estava! Então, como que contrariando a lei da gravidade, levantou a cabeça e soerguendo o peito, não conteve o espanto ao deparar  com a maneta do carro entre as virilhas, as pernas estendidas e os pés espalmados contra a porta do  lugar do morto.
Acabara de acordar no carro, sim, ma a visão que desfrutava sobre o mar , era como se sobrevoasse a partir da cabina de comando dum avião. Mas foi só cá fora, enquanto uma gaivota rasou, grasnando, o tejadilho, é que acabou por medir a distância que separava o para-choques do abismo: um braço! Não mais! Por um triz que ao estacar ali, já de noite, não se despenhara a fuo de prumo naquelas profundezas, de um modo bem diferente do voo planado, esplendoroso, da Telma e da Luísa, ao precipitarem-se num despenhadeiro do Grand Canyon.
Ora, parasse umas milésimas de segundo adiante, e o mundo não haveria de ficar mais pobre! Sem dúvida que ir ao leme envolve menos riscos que ir ao volante. Sempre o dissera. Entretanto, o que se impunha nessa altura, era uma meticulosa observação ao declive e consistência do solo para evitar uma mal sucedida manobra de marcha atrás, com uma derrapagem…
Feira a inspeção ao terreno, com dedos de algodão e chaves entre os dentes, lá abriu a porta do carro, sentando-se ao volante. Mas que carcaça merdenta, vociferou ante o persistente e paralisante silêncio do motor após repetidas meias-voltas à chave de ignição. Pois já vais ver! – disse, como se dirigisse a uma besta fazendo ouvidos fazendo ouvidos moucos às ordens do dono. E batendo estrondosamente com a porta ao sair, depois de destravar o carro, sem mais delongas, pôs-se a empurra-lo com todo o aferro, para o afocinhar no vazio!
É bem provável – ironizou – que tenha acabado de alterar a rota da órbita da terra e o número de dias do calendário anual, no instante em que a viatura desaparecera da sua visão…
O que o deixara apreensivo, porém, fora não ter ouvido qualquer ruído aparatoso da carripana a embater naquele fundão… Como se, uma vez arremessada do topo da falésia, andasse a velejar pela atmosfera… Tudo quanto dava conta, era daquela monótona progressão das ondas a desfazerem-se antes de atingirem as arribas…e mais nada! Seja como for, a ideia de, a partir daí,  deixar de serpentar  pelas estradas, amachucar a chapa do carro com incontáveis mazelas, despender fortunas com avarias mecânicas; ouvir e devolver constantes impropérios durante a condução, transmitia-lhe uma plena sensação de alívio. Como se, alvo de uma emboscada, tivesse acabado de sair ileso!
Apenas havia cometido um erro sério: esquecer-se de retirar a garrafa de gim, acomodada no porta-bagagens…

                                                            Lisboa. Julho, 2016