O Único Erro
Não conseguia voltar-se para lado nenhum… Como se um colete de forças o tivesse manietado. E tampouco sabia onde estava! Então, como que contrariando a lei da gravidade, levantou a cabeça e soerguendo o peito, não conteve o espanto ao deparar com a maneta do carro entre as virilhas, as pernas estendidas e os pés espalmados contra a porta do lugar do morto.
Acabara de acordar
no carro, sim, ma a visão que desfrutava sobre o mar , era como se sobrevoasse
a partir da cabina de comando dum avião. Mas foi só cá fora, enquanto uma
gaivota rasou, grasnando, o tejadilho, é que acabou por medir a distância que
separava o para-choques do abismo: um braço! Não mais! Por um triz que ao
estacar ali, já de noite, não se despenhara a fuo de prumo naquelas
profundezas, de um modo bem diferente do voo planado, esplendoroso, da Telma e
da Luísa, ao precipitarem-se num despenhadeiro do Grand Canyon.
Ora, parasse umas
milésimas de segundo adiante, e o mundo não haveria de ficar mais pobre! Sem
dúvida que ir ao leme envolve menos riscos que ir ao volante. Sempre o dissera.
Entretanto, o que se impunha nessa altura, era uma meticulosa observação ao
declive e consistência do solo para evitar uma mal sucedida manobra de marcha
atrás, com uma derrapagem…
Feira a inspeção
ao terreno, com dedos de algodão e chaves entre os dentes, lá abriu a porta do
carro, sentando-se ao volante. Mas que carcaça merdenta, vociferou ante o persistente
e paralisante silêncio do motor após repetidas meias-voltas à chave de ignição.
Pois já vais ver! – disse, como se dirigisse a uma besta fazendo ouvidos fazendo
ouvidos moucos às ordens do dono. E batendo estrondosamente com a porta ao sair,
depois de destravar o carro, sem mais delongas, pôs-se a empurra-lo com todo o
aferro, para o afocinhar no vazio!
É bem provável – ironizou
– que tenha acabado de alterar a rota da órbita da terra e o número de dias do
calendário anual, no instante em que a viatura desaparecera da sua visão…
O que o deixara
apreensivo, porém, fora não ter ouvido qualquer ruído aparatoso da carripana a
embater naquele fundão… Como se, uma vez arremessada do topo da falésia,
andasse a velejar pela atmosfera… Tudo quanto dava conta, era daquela monótona
progressão das ondas a desfazerem-se antes de atingirem as arribas…e mais nada!
Seja como for, a ideia de, a partir daí, deixar de serpentar pelas estradas, amachucar
a chapa do carro com incontáveis mazelas, despender fortunas com avarias
mecânicas; ouvir e devolver constantes impropérios durante a condução,
transmitia-lhe uma plena sensação de alívio. Como se, alvo de uma emboscada,
tivesse acabado de sair ileso!
Apenas havia
cometido um erro sério: esquecer-se de retirar a garrafa de gim, acomodada no
porta-bagagens…
Lisboa. Julho, 2016
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