1986 (RM) |
Começa-se pelo cheiro a gasolina como não há em
nenhuma outra parte do mundo. Porque as octanas são de outra etnia ou
porque o pulmão sente aí os odores de uma forma diferente. Talvez porque o bafo
quente do verão magrebino filtre os odores alterando as essências. O que sei é
que sou mais saudavelmente sensível ao cheiro da gasolina marroquina do que às
exalações do nosso suposto eucalipto. Enche-me muito mais o espírito. Sem
dúvida.
(rm) |
Mas em
matéria de identificação deste país pelos cheiros, os que lá vão, para nunca
mais repetirem a viagem, costumam ficar apenas pela lembrança da hortelã; os
que, como eu, sonham a cada dia que passa, em retornar, o cheiro da
hortelã é apenas a cor de um arco íris imaginário composto por múltiplos
tons....
Cheira,
cheira a perfume de hortelã, que flutua na água fervida para servir e conviver
com o chã; cheira, cheira a perfume de hortelã as labirínticas calçadas que se
pisam numa velha medina; cheira, cheira à doce erva aromática os panos
envoltos nas cinturas das mulheres.Mas não é só
a hortelã que se encarrega de impregnar o ar. Há também o odor da carpintaria
esculpida a partir do sândalo, do ébano ou da leve Tuya do sul transformada em
caixinha de jóias, pente de cabelo ou tabuleiro de damas.
Há o cheiro
redondo, avermelhado ou amarelo das grossas contas de colar de âmbar, que
brilham no pescoço das mulheres; o cheiro doce e volátil do haxixe a
propagar-se intensamente pela espessura morna das noites de Marraquexe,
Ourzazate ou de Chefchauen; o cheiro que se liberta da pimenta, da canela,
dos açúcares torrados, que cobrem as iguarias de mel; há os cheiros das
essências contidas na transparência de pequenos frascos de uma velha botica. Há
estes e outros múltiplos cheiros que, por vezes, misturando-se com a hortelã,
ainda que não a apaguem, mudam o seu hálito obrigando-nos a respirá-la de outro
modo.
1991 (RM) |
Já uma vez,
comigo mesmo, me perguntei a que cheiramos nós, os portugueses que vieram de
tão longe e que moram aqui há tanto tempo. É verdade que o nosso mercado da Ribeira,
em Lisboa, ainda cheira a cacau à noite e a pão e a hortaliça saloios; a peixe
de mar e a flores durante o dia. Que o Porto, Coimbra, Évora, Braga cheiram
também a qualquer coisa do campo, do rio ou do oceano que entra pela
cidade… Dizem que as mulheres parisienses deixam um rasto de
perfume à sua passagem quando poisam os passeios de Montmartre. É também
conhecido como em Andaluzia, o fumo dos charutos enche o ar das ruas, dos
cafés e dos bares, ao cair da noite.Na Holanda,
em Abril, as tulipas cegam os olhos até se tornarem insuportáveis aos meus,
tantas são por tudo que é domínio da Rainha.... Mas a que cheiram as
rubras, amarelas, brancas ou até as recentes negras tulipas holandesas? A menos
que plástico, a bem dizer a nada!
1986 (RM) |
Tanto quanto
sei, o prazer de uma pequena tontura provocada por um cheiro inalado em
qualquer parte do mundo meu conhecido, faz-se sentir apenas num ponto
determinado: rua, bairro, avenida, praça ou jardim e por algo perfeitamente
referenciado. Ora, por Marrocos é todo o país que cheira e se dá a
cheirar. Seja através dos odores que, por agradáveis, se classificam de
perfumes, seja através dos que, correntemente são para a maior parte das
pessoas evitáveis: a bosta de boi, o que transpira do couro, do burro ou da
mula, do pelo de cabra em transumância pelas escarpas do Atlas, do vulto do
camelo, esse grande senhor do deserto, mais antigo que a cidade de Jerusalém.
Pessoalmente,
e sem querer infundir qualquer espécie de repugnância aos que franzem o
sobrolho perante os cheiros emanados do bafo ou do suor dos animais, eu até nem
me incomodo, o que vale dizer que gosto!
1990 (RM) |
1990( RM) |
Assim,
da terra ao ar, das estrelas ao chão que piso, inumeráveis são os cheiros que
se cruzam e penetram tanto nas narinas como nos poros da pele. A própria música
árabe, tuaregue e berbere, que outrora foram ouvidas na Península, e que hoje
tanto podem vir de uma telefonia de pilhas como das nuvens voláteis ou do
sorriso anónimo do olhar de Fátima, que perpassa como uma brisa, cheira a
asa de condor, a sombra de palmeira isolada em campo nu, e a água.A toda a
água de Marrocos: a que goteja de uma fonte sedenta; a que se aninha no
fundo de um poço branco; a que move os pequenos moinhos das cataratas de
Ouzoudde; a que corre pelos sulcos onde há hortas a regar; a que em gelo
permanece nos picos que se avistam de Oukaimedene ao longo do verão; a que se
transmuda em novelo branco no ar para vir a ser chuva; a que, límpida e serena,
abriga os peixes sagrados dos lagos das Gargantas de Todra.
Cataratas de Ouzoude, Marrocos, 1990 (RM |
Água,
essa miragem sentida, sempre que me reencontro com o deserto, e que
cheira, na verdade cheira, quando desliza, gota a gota, pelo canto dos
meus olhos.
Lisboa, Anos 90
Todas as fotos foram obtidas em Marrocos.
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