A próxima criancinha a desaparecer sou eu
Foi em Palmela que entrei numa
parvoíce entre um incontável número delas que, em mim, posso assegurá-lo,
explodem por gestação espontânea, como as silvas, as alcachofras, os
trevos…Tudo o que é mato!
E a parvoíce em causa ocorreu na
presença de dois colegas e de duas pessoas que me eram desconhecidas. Sem
qualquer propósito, como quem atira à queima-roupa, o que me deu para dizer?
Nem mais, nem menos do que isto:
“Imaginem que há um bom par de
dias tenho andado à procura do doido do Luís Pacheco, e nada!”
E à falta de qualquer reacção
exclamativa, sequer umas subtis reticências, continuei:
“Olhem que até cheguei a ir,
ontem, ao Júlio de Matos!”
Sem eco algum por parte dos meus
ouvintes, e achando por bem acabar depressa com a questão introduzida,
arrematei:
“ Segundo um funcionário daquela
instituição, o gajo teria já saído há bastante tempo. Paciência!”
E foi então que, em acabando de
mandar esta boca, um dos dois desconhecidos me interpelou do mesmo modo com que
lhe poderia ter dado para um puxão de orelhas:
“ Mas o meu pai nunca esteve no Júlio de Matos!”
Aí, de mim para mim, e dando um passo atrás como quem acaba
de ser baleado:
“Ó, desgraçado! já acabaste de ganhar o dia! Ora, quando é
que aprendes a ter algum tento na língua?”
E, de imediato, para o desconhecido, tentando branquear o
suposto equívoco:
“Afinal, apenas me limitei a
seguir a indicação dada por um amigo de que se encontrava lá, e eu queria
falar-lhe”
Dizendo isto, dei às de Vila Diogo,
despedindo-me dos dois colegas bem como dos dois desconhecidos, às cambalhotas
cá por dentro…
Passado, não importa quanto tempo, um, dois, três meses,
peguei na “ Comunidade” do Luís Pacheco e pus-me a relê-la. E ao relê-la, a
certa altura, perguntei a mim mesmo:
“Por que não a retalhas como se
faz ao pão, às fatias, e entre os espaços não lhe metes música para ver o que
dá?”
De seguida, dando continuidade a
alguns monólogos que, já nessa altura, me habituara a travar comigo
acrescentei:
“ Vá lá, pega nessa pequena e
grande estória, ( uma 7ª edição dedicada a “ Mário Cesariny de Vasconcelos,
poeta do corpo”) e, para a frente é que é o caminho, pois não existem provas que a coisa não resulte”
E Fui. Logo que cheguei casa,
pus-me a fragmentar a “Comunidade” sem alterar a ordenação, mantendo o mesmo
fio condutor com que o Pacheco a escreveu. Nada de adicionar ou subtrair o que
quer que seja, entremeando-a apenas com a anotação de uns trechos musicais que
ainda recordo: da Edith Piaf, ( La vie
en Rose, salvo erro); do Léo Ferré; do Bruce Springsteen; dos Doors; não
sei porque carga de água do Vangelis no L’ Apocalypse… Tudo isto e mais uns
outros, para além de alguns efeitos especiais que pudessem sugerir a ondulação do mar, nuns casos, do vento, noutros…
Acabado este trabalho, peguei no telefone para
contactar o Moreno Pinto perguntando-lhe:
“Será que poderei, amanhã, ao
princípio da tarde, fazer uma gravação?
Pelo que me respondeu:
“Sim, o estúdio está disponível.
Aparece!”
E, no dia
seguinte, comecei a gravar o livro com o apoio técnico do Moreno recheando-a,
aqui e ali, com os textos musicais previamente seleccionados e de acordo com o
guião manuscrito que havia concebido entre os joelhos. Não sem antes ter dito
para o microfone uma frase que ainda a conservo bem presente, extraída dos “
Exercícios de Estilo” do LP:
“ A próxima
criancinha a desaparecer sou eu”
Ao cabo de duas
horas, com a missão cumprida, o M.P, muito competente e pessoa que eu estimava
disse, provavelmente, para me agradar:
“Parece-me estar muito bom”
E eu:
“Oxalá que não
tenha ficado muito mal…”
Era Agosto e, no
dia seguinte, já com as malas feitas, pirei-me com a Guida e uns amigos para o
Norte. Ora, como as ondas hertzianas da Telefonia de Lisboa, ali, no Bairro
Alto, não chegassem tão longe, nunca mais pensei no programa. Mas sei,
entretanto, que através de uma pessoa
(que não recordo quem seja) foi comunicado ao L .P a transmissão da peça prevista para uma data
muito próxima…
Acabado o tempo
de veraneio, e regressado à Telefonia para a produção de mais um programa do
“Astrolábio”, um colega da rádio interpelou-me, logo, á entrada da emissora
dizendo:
“ Olha que uma
hora depois da tua gravação ter ido para o ar, o L P apareceu por aqui, para
dar um abraço ao cabrão que lhe tinha pregado semelhante partida…”
E outro colega
completou:
“ E trouxe duas
embalagens cheias de pastéis de nata de Belém que distribuiu por todo o pessoal
sobrando ainda uma porção deles…”
E o primeiro
colega acrescentou:
“ Pasteis e uma
mão cheia de livros, pedindo para te entregar dois, e que lhe ligasses para
este número que ele quer falar-te”
E o segundo
colega voltou:
“ Sabes que o
gajo estranhou não te ter visto, perguntando por onde é que andarias, sendo de
todo previsível encontrar-te aqui... Se serias algum espírito santo a voar por
todo o lado ou, hipótese mais plausível, um demónio…”
Depois destes
breves dedos de conversa, peguei no par de Comunidades deixado para mim,
deparando numa delas ( na página consagrada ao título da obra, autoria do
escritor e dos desenhos nela contidos ( Mar) um texto manuscrito pelo punho do
Pacheco:
“ Gostei de te
ouvir e pior: lembra que sou cardíaco. O programa teria agradado? Eu, ao
ouver-te ( ? ) capacéssimo, não chorei por vergonha - de gozo, de prazer, de
SÔDADES, e tinha-me prevenido com ½ flindix ( ? ) e ½ valium 10 “
E, ainda,
caligrafado na vertical (para suprir a falta de espaço) a assinatura á qual
acrescentou a data da sua passagem pela Telefonia de Lisboa, em 8 do 8 de 88 :
“ Obrigado e
gostaria de te conhecer. VALE? “
Não lembro quanto tempo depois disquei o número de telefone para
combinar com o Pacheco o dia e o lugar do encontro que haveria de ocorrer na
entrada da Universidade Clássica de Lisboa. E, embora nunca o tivesse visto, ao
vivo, reconheci-o de imediato, pois não me pareceu poder ser outro: com umas
calças muito largueironas, esverdeadíssimas, sapatos com os atacadores ao
vento, armações de óculos, grossas, um pouco magro, sim, só poderia ser ele!
Então cumprimentamo-nos e não sei qual de nós foi mais entusiasta nas
considerações que fez. Ele sobre o programa que estava uma “boa merda”; eu,
sobre o seu livro que, de tanto gostar, o impingia aos amigos lendo-o em voz
alta.
Acabada esta
troca de galhardetes, logo o Pacheco, com quem esperava ir beber um copo,
inesperadamente, se apressou a mostrar urgência em apanhar o Metro, pelo que me
dispus a conduzi-lo até à estação do Campo Grande, no 127.
Embora o
trajecto fosse curto, é para esquecer… Tal como os ruídos expelidos pelo tubo
de escape roto e do trânsito penetrando pela janela, que o Pacheco fez questão
em manter toda escancarada, suponho eu, para respirar melhor…
Sem exageros e,
não padecendo, nesse tempo, de falta de audição, não fui capaz de agarrar uma
palavra, apesar de ele falar, falar durante todo o itinerário…
Só quando
chegados ao objectivo previsto, com o motor calado, e apeados no passeio, pude
ouvi-lo com muita clareza. Disse então:
“Moro na rua… (
fosse lembrar-me qual) e caso queiras aparecer… a gente abre uma garrafinha do
tintol e serramos algum presunto… Mas presta atenção: terás que tocar à
campainha ( ou seria um batente?) e
se, porventura, não te abrir a porta,
então, pegas num calhau e atira-o contra o vidro da janela. Mas com o devido
cuidado, não vás parti-lo… É que a filha da puta da vizinha de cima mói-me a
tola com a Rádio Renascença sempre aos berros e eu para a calar, abro o volume
todo, mas todo da Rádio Comercial…
Nunca
correspondi ao convite do Luís Pacheco em aparecer-lhe, sendo que os
compromissos com a rádio, os trabalhos impostos pela Faculdade, o tempo, sempre
pouco e vertiginoso dedicado ao enamoramento da altura, a par de outras
ocupações, não servirão plenamente, talvez, para justificar a minha falta...
Não apareci e,
claro, hoje é demasiado tarde para voltar atrás!
E, também,
jamais voltei a ouvir a cassete com o registo da emissão. Sequer sei onde encontrá-la.
E que razão há, hoje, em procurá-la?
R. M
Lisboa, 19 de
Janeiro de 2008