sábado, 12 de novembro de 2016

Luíz Pacheco




A próxima criancinha a desaparecer sou eu


Foi em Palmela que entrei numa parvoíce entre um incontável número delas que, em mim, posso assegurá-lo, explodem por gestação espontânea, como as silvas, as alcachofras, os trevos…Tudo o que é mato!

E a parvoíce em causa ocorreu na presença de dois colegas e de duas pessoas que me eram desconhecidas. Sem qualquer propósito, como quem atira à queima-roupa, o que me deu para dizer? Nem mais, nem menos do que isto:

“Imaginem que há um bom par de dias tenho andado à procura do doido do Luís Pacheco, e nada!”

E à falta de qualquer reacção exclamativa, sequer umas subtis reticências, continuei:

“Olhem que até cheguei a ir, ontem, ao Júlio de Matos!”

Sem eco algum por parte dos meus ouvintes, e achando por bem acabar depressa com a questão introduzida, arrematei:

“ Segundo um funcionário daquela instituição, o gajo teria já saído há bastante tempo. Paciência!”

E foi então que, em acabando de mandar esta boca, um dos dois desconhecidos me interpelou do mesmo modo com que lhe poderia ter dado para um puxão de orelhas:

“ Mas o meu pai nunca esteve no Júlio de Matos!”

Aí, de mim para mim, e dando um passo atrás como quem acaba de ser baleado:

“Ó, desgraçado! já acabaste de ganhar o dia! Ora, quando é que aprendes a ter algum tento na língua?”

E, de imediato, para o desconhecido, tentando branquear o suposto equívoco:

“Afinal, apenas me limitei a seguir a indicação dada por um amigo de que se encontrava lá, e eu queria falar-lhe”

 Dizendo isto, dei às de Vila Diogo, despedindo-me dos dois colegas bem como dos dois desconhecidos, às cambalhotas cá por dentro…


Passado, não importa quanto tempo, um, dois, três meses, peguei na “ Comunidade” do Luís Pacheco e pus-me a relê-la. E ao relê-la, a certa altura, perguntei a mim mesmo:

“Por que não a retalhas como se faz ao pão, às fatias, e entre os espaços não lhe metes música para ver o que dá?”

De seguida, dando continuidade a alguns monólogos que, já nessa altura, me habituara a travar comigo acrescentei:

“ Vá lá, pega nessa pequena e grande estória, ( uma 7ª edição dedicada a “ Mário Cesariny de Vasconcelos, poeta do corpo”) e, para a frente é que é o caminho, pois  não existem provas que a coisa não resulte”

E Fui. Logo que cheguei casa, pus-me a fragmentar a “Comunidade” sem alterar a ordenação, mantendo o mesmo fio condutor com que o Pacheco a escreveu. Nada de adicionar ou subtrair o que quer que seja, entremeando-a apenas com a anotação de uns trechos musicais que ainda recordo: da Edith Piaf, ( La vie  en Rose, salvo erro); do Léo Ferré; do Bruce Springsteen; dos Doors; não sei porque carga de água do Vangelis no L’ Apocalypse… Tudo isto e mais uns outros, para além de alguns efeitos especiais que pudessem sugerir  a ondulação do mar, nuns casos,  do vento, noutros…

 Acabado este trabalho, peguei no telefone para contactar o Moreno Pinto perguntando-lhe:

“Será que poderei, amanhã, ao princípio da tarde, fazer uma gravação?

Pelo que me respondeu:

“Sim, o estúdio está disponível. Aparece!”

E, no dia seguinte, comecei a gravar o livro com o apoio técnico do Moreno recheando-a, aqui e ali, com os textos musicais previamente seleccionados e de acordo com o guião manuscrito que havia concebido entre os joelhos. Não sem antes ter dito para o microfone uma frase que ainda a conservo bem presente, extraída dos “ Exercícios de Estilo” do LP:

“ A próxima criancinha a desaparecer sou eu”

Ao cabo de duas horas, com a missão cumprida, o M.P, muito competente e pessoa que eu estimava disse, provavelmente, para me agradar:

 “Parece-me estar muito bom”

E eu:

“Oxalá que não tenha ficado muito mal…”

Era Agosto e, no dia seguinte, já com as malas feitas, pirei-me com a Guida e uns amigos para o Norte. Ora, como as ondas hertzianas da Telefonia de Lisboa, ali, no Bairro Alto, não chegassem tão longe, nunca mais pensei no programa. Mas sei, entretanto, que através de uma pessoa  (que não recordo quem seja) foi comunicado ao L .P  a transmissão da peça prevista para uma data muito próxima…


Acabado o tempo de veraneio, e regressado à Telefonia para a produção de mais um programa do “Astrolábio”, um colega da rádio interpelou-me, logo, á entrada da emissora dizendo:

“ Olha que uma hora depois da tua gravação ter ido para o ar, o L P apareceu por aqui, para dar um abraço ao cabrão que lhe tinha pregado semelhante partida…”

E outro colega completou:

“ E trouxe duas embalagens cheias de pastéis de nata de Belém que distribuiu por todo o pessoal sobrando ainda uma porção deles…” 

E o primeiro colega acrescentou:

“ Pasteis e uma mão cheia de livros, pedindo para te entregar dois, e que lhe ligasses para este número que ele quer falar-te”

E o segundo colega voltou:

“ Sabes que o gajo estranhou não te ter visto, perguntando por onde é que andarias, sendo de todo previsível encontrar-te aqui... Se serias algum espírito santo a voar por todo o lado ou, hipótese mais plausível, um demónio…”

Depois destes breves dedos de conversa, peguei no par de Comunidades deixado para mim, deparando numa delas ( na página consagrada ao título da obra, autoria do escritor e dos desenhos nela contidos ( Mar) um texto manuscrito pelo punho do Pacheco:

“ Gostei de te ouvir e pior: lembra que sou cardíaco. O programa teria agradado? Eu, ao ouver-te ( ? ) capacéssimo, não chorei por vergonha - de gozo, de prazer, de SÔDADES, e tinha-me prevenido com ½ flindix ( ? ) e ½ valium 10 “

E, ainda, caligrafado na vertical (para suprir a falta de espaço) a assinatura á qual acrescentou a data da sua passagem pela Telefonia de Lisboa, em 8 do 8 de 88 :

“ Obrigado e gostaria de te conhecer. VALE? “

                                                                                                                                                           Não lembro quanto tempo depois disquei o número de telefone para combinar com o Pacheco o dia e o lugar do encontro que haveria de ocorrer na entrada da Universidade Clássica de Lisboa. E, embora nunca o tivesse visto, ao vivo, reconheci-o de imediato, pois não me pareceu poder ser outro: com umas calças muito largueironas, esverdeadíssimas, sapatos com os atacadores ao vento, armações de óculos, grossas, um pouco magro, sim, só poderia ser ele! Então cumprimentamo-nos e não sei qual de nós foi mais entusiasta nas considerações que fez. Ele sobre o programa que estava uma “boa merda”; eu, sobre o seu livro que, de tanto gostar, o impingia aos amigos lendo-o em voz alta.

Acabada esta troca de galhardetes, logo o Pacheco, com quem esperava ir beber um copo, inesperadamente, se apressou a mostrar urgência em apanhar o Metro, pelo que me dispus a conduzi-lo até à estação do Campo Grande, no 127.

Embora o trajecto fosse curto, é para esquecer… Tal como os ruídos expelidos pelo tubo de escape roto e do trânsito penetrando pela janela, que o Pacheco fez questão em manter toda escancarada, suponho eu, para respirar melhor…
Sem exageros e, não padecendo, nesse tempo, de falta de audição, não fui capaz de agarrar uma palavra, apesar de ele falar, falar durante todo o itinerário… 

Só quando chegados ao objectivo previsto, com o motor calado, e apeados no passeio, pude ouvi-lo com muita clareza. Disse então:

“Moro na rua… ( fosse lembrar-me qual) e caso queiras aparecer… a gente abre uma garrafinha do tintol e serramos algum presunto… Mas presta atenção: terás que tocar à campainha ( ou seria um batente?)  e se,  porventura, não te abrir a porta, então, pegas num calhau e atira-o contra o vidro da janela. Mas com o devido cuidado, não vás parti-lo… É que a filha da puta da vizinha de cima mói-me a tola com a Rádio Renascença sempre aos berros e eu para a calar, abro o volume todo, mas todo da Rádio Comercial…

Nunca correspondi ao convite do Luís Pacheco em aparecer-lhe, sendo que os compromissos com a rádio, os trabalhos impostos pela Faculdade, o tempo, sempre pouco e vertiginoso dedicado ao enamoramento da altura, a par de outras ocupações, não servirão plenamente, talvez, para justificar a minha falta...

Não apareci e, claro, hoje é demasiado tarde para voltar atrás!

E, também, jamais voltei a ouvir a cassete com o registo da emissão. Sequer sei onde encontrá-la. E que razão há, hoje, em procurá-la?



R. M

Lisboa, 19 de Janeiro de 2008