quarta-feira, 16 de agosto de 2017

ESTORIETAS ( 6 )



Paredes Infetadas

Mal os fantasmas de sempre começaram a deslizar pela casa, logo decidiu telefonar ao psicanalista.
“ Não me diga que está, de novo, com as paredes infetadas?”, inquiriu o médico a partir de um consultório nas Avenidas Novas.
“É verdade”, confirmou o paciente, num tom de canino aflito, abandonado pelo dono. E, depois:
 “São os monstros do costume! Estas hediondas criaturas, que só podem ter sido fecundados pelo sémen de um demónio e paridos pela cabra de uma bruxa.“
“Quer-me  parecer  ter deixado mais uma vez de tomar os medicamentos!.” Exclamou o médico.
Porém, a resposta veio no desligar instantâneo do telefone…
“ Isto ainda corre mal” Disse para si mesmo, enquanto o paciente, do outro lado da linha, se aninhava no sofá,  obstinado em manter as  pálpebras cerradas até ao fim do dia, evitando assim a visão dos fantasmas a deslizarem, espalmados,  pelas paredes...
Em chegada a noite, na varanda, o céu carregado de trevas, baço como uma albufeira de água estagnada, parecia na iminência de desabar sobre ele. Nada irradiava, sequer a mais ténue faúlha de uma estrela!...
Só quando deparou com aquele extenso rasto cintilante projetado pelos faróis das viaturas, ao fundo do prédio,  perdeu a respiração: nunca a via látea estivera tão ao seu alcance! 
Bastaria curvar-se, estender um braço e acabaria por agarrar uma estrela errante. Senão mesmo uma braçada delas, a fantasia de uma constelação! Talvez a Cassiopeia ou a Ursa Maior.
Não importa. No instante seguinte, haveria de decidir-se por qual!

                                                                                      Lisboa, Agosto, 2016

Sobre os Joelhos ( 2 )


Vão chegando não se sabe bem de onde. Hoje, uns; amanhã, outros. E todos permanecem por largo tempo. Só de longe em longe, um há  que berra como se fosse golpeado. Ou então vocifera contra o mundo, sem nunca  subverter a ordem pública. Todos voam por cima de um ninho de cucos, e só o medo que nutrimos por nós próprios é que nos levará  a supor que poderão atentar, de súbito, contra a nossa bonomia à borda de água. Mas não!  Pensando melhor, talvez  sirvam  mesmo para nos persuadir sobre  a nossa plena sanidade mental. 


                                                                                       Lisboa, julho,2014




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Sobre os Joelhos ( 1 )



O abandono dos corpos a que se entregam os velhos, os toxicodependentes e outros que não sei bem em que prateleira arrumá-los. Gente que repousa por muito tempo parada, desenhando gestos sem pressa; que dormita sobre um degrau ou um banco de pedra.

Não creio que pensem em nada ou vejam o que se passa em volta. Só, talvez, uma única coisa, muito pequena e leve. Também parecem surdos ao bulíçio que os cerca.

Anestesiados de todo, salvo à mornidade do sol. E dizer que, por vezes, os invejo? 


                                                                                Lisboa, outubro,2016

ESTORIETAS ( 5 )



Análises

Médico de clínica geral e crítico literário, voltado para o paciente, com pretensões em tornar-se num escritor de pequenos contos e poemas:

“Com esta taxa de açúcar, valor de tensão arterial e ritmo cardíaco irregular, não me parece que venha a ser capaz de mostrar o seu talento numa única linha!”

Depois, arrematando:
“A não ser que o laboratório tenha trocado as análises. Vamos repeti-las!”

                                  
                                                                                       Lisboa, Agosto, 2016


POEMATOS ( 9 )



Sobremesa

A cada verão, não quero outra sobremesa:
figos brancos a pensar na minha mãe;
peras ainda um pouco verdes, no meu pai.

Depois, como quem inala o pó de uma galáxia
depositado  numa cápsula trazida da farmácia,
fumo um cigarro e outro até queimar os dedos.

Só  então bebo  a chávena cheia de café
adoçado com uma  pastilha de aspartamo
e duas soluçadas lágrimas amargas.



                                                                         Lisboa, setembro,2016