A NATUREZA DA FOTOGRAFIA EM MÁRIO
FURTADO
1
É sabido que toda a captação fotográfica,
ao envolver uma cadeia de múltiplas escolhas pessoais (enquadramento, ponto de
vista, composição…) acaba por constituir-se - como é comum, dizer-se - numa
outra realidade.
Assim, o fotógrafo poderá ser entendido como
o alquimista que, a partir da varinha de condão da câmara, converte a imagem do
objeto percecionada a olho nu numa outra imagem, após ter sido filtrada através
do meio ótico.
Mas para Mário Passos
Furtado, a metamorfose ocorrida no instante do disparo parece ficar aquém das suas espectativas, como tentaremos
comprová-lo na parte final desta apresentação.
Entretanto, tratemos de fixar a atenção
numa possível leitura, ainda que sintética, sobre a presente exposição, a natureza das coisas, repartida em
séries, designadas pelo fotógrafo por hipóteses.
(Hipótese 1)- vermelho em mulher
São oito rostos de mulher. De geografias
e idades distintas, desprevenidamente expostos à luz do dia. De tal modo, que o
fotógrafo pode dar-se à liberdade de lhe atribuir nomes. Ei-los: alegria, riso,
decisão, firmeza, dúvida; perceção e frustração. Mas falta-nos um: o que tem
por título: calma. O único esculpido não em carne, e sim em pedra. Mas que
importância tem, se nem por isso deixa de ser um rosto?
Apesar de diferentes rostos há, no
entanto, um apontamento gráfico transversal a todos: a faixa vermelha pendendo do alto de cada retrato a preto e branco. E
é aqui que nos cabe perguntar: tratar-se-á dum mero efeito plástico? Ou deverá
ser interpretado como um elemento simbólico? E neste caso, o que significa?
Eis o desafio de reflexão que pode muito
bem colocar-se a cada visitante da Exposição.
(Hipótese 2) -
casas curvas
E porque não o rosto dos prédios sem a
verticalidade com que foram projetados pelos arquitetos, mas transmudados em curvas, inclinados para o
chão da rua?
Ou terão sido tomadas por alguma embriaguez?
As casas ou nós? De qualquer modo, flutuam num carregado azul de mar ou de céu.
Casas legendadas com belos versos soltos de Rui Belo como, entre outros, estes:
As casas de fora olham-nos pelas janelas…
Não sabem nada de casas os construtores;
As casas que eu fazia em pequeno;
… Na casa atravessei as estações…
(Hipótese 3) - Zetética
Titulo que se traduz no exercício de
formular perguntas; de pôr em causa respostas feitas… Que questiona o estabelecido, o dogma, seja de que
natureza for.
Reportando-se, porém, a um método,
visando a investigação da razão e a natureza
das coisas, talvez esta hipótese
reflita o posicionamento do fotógrafo face à fotografia. O mesmo é dizer: aos propósitos,
procedimentos e recursos envolvidos na construção da imagem fotográfica.
(Hipótese 4) - rua morais soares 1 e
(Hipótese 5) - rua morais soares 2
Duas hipóteses afins que, incidindo
sobre o género fotografia de rua,
reúnem no seu conjunto, o mais extenso número de fotos entre as demais séries.
E de que rua única se trata? Da morais soares: calcorreada passo a
passo, minuto a minuto, tanto pela luz do dia como pela noite afora, em busca
duma fração de segundo aqui, outra acolá… Não em demanda dum instante decisivo bressoniano,
mas dum momento cristalizado numa captação, que posteriormente possa ser
submetida à criação de uma outra imagem: a que designaremos por conclusiva!
E o que se vislumbra não são pessoas? Estagnadas
num passeio ou seguindo em frente… Mas sem nunca darem aso a qualquer diálogo
de rua. Como se pudessem evitar cruzarem-se umas pelas outras! A verdade é que
se mostram quase sempre sós. Como o vulto feminino que se adivinha numa
superfície refletida na rua; a figura que se observa no espelho duma loja; a que, de raspão, corre rente a
uma porta envidraçada….
Mesmo os transeuntes que figuram aos pares, tal como os manequins, por
duas vezes exibidos em vitrinas luzindo pela noite, são capazes de uma palavra
entre si. Cada qual tem um ponto de vista seu, e é para aí que dirige o olhar.
A verdade é que a solidão que parece evidenciar-se
nas pessoas, afinal, pode bem ser extensiva às panorâmicas de rua surpreendidas
por MPF. Mesmo quando o fotógrafo congela o brilho quase feérico dos faróis das
viaturas, e dos candeeiros que reluzem como
estrelas, recém-chegadas dos céus!
Na morais
soares, o próprio fotógrafo há de, dum modo ou doutro, partilhar a solidão
que a rua inspira!
Mas o que percecionará o visitante desta
exposição, ao passar pelas paredes emolduradas com as imagens da morais soares?
Hipótese 7 – Diferenças
Em contraste com o caminho até aqui trilhado,
nenhum rosto há, por mais furtivo, que se dê a ver. Apenas a representação de
janelas, mostradores, portas, romãs, torres… Enfim, a natureza das coisas outras, parece querer sugerir aqui o desfecho
de um ciclo ou, quem sabe, a ponte transitória para outro…
2
Como havíamos já salientado, para Mário
Furtado a imagem tatuada no visor da câmara não é senão vista como uma matéria-prima passível de ser submetida
a tratamento posterior, não se dispensando para esse feito as ferramentas
concebidas pelos softwares.
Então,
o que desde já ocorre perguntar é o que atrairá o fotógrafo à subversão duma
certa linguagem fotográfica entendida como
a mais convencional?
Porventura, a necessidade em perseguir
uma linha conceptual, onde a ideia que se tem sobre a coisa prevaleça sob a
forma como ela se dá a ver.
Mas é a propósito do trabalho incindindo
sobre as fotos obtidas, que talvez valha a pena evocar Eugene Smith que, sem largar mão da pós-produção, tóxica, morosa
e extenuante, não deixava de sujeitar-se
a algumas observações, nem sempre muito abonatórias sobre o seu exercício. Tais
como estas:
- Afinal, as fotos de Smith não são tão
naturais como isso! Ora repare-se como ele alterou o olhar desta personagem!
- E já sem contarmos com o rearranjo prévio duma ou
outra cena que ele procura fotografar! Não é verdade?
E como é que Eugene Smith reagia a tais
reparos? Pois então, ouça-mo-lo:
Se eu puder levá-los a pensar,
fazê-los sentir, levá-los
a ver, então eu fiz tudo o que podia como professor.
a ver, então eu fiz tudo o que podia como professor.
Como se depreenderá há manipulações que poderão
conferir ao objeto fotografado não apenas uma outra dimensão estética mas uma expressividade,
por certo mais compatíveis com as que a fotógrafo tem em mente transmitir. E
quem diz mente, poderá dizer coração!...
Mas é ao evitar restringir o trabalho do
fotógrafo MPF ao estrito âmbito do concetual, que somos ainda tentados a
evidenciar uma outra particularidade, esta sugestivamente ligada a um certo
pictoralismo, que não o herdado da última década do século XIX
E sim, a um pictoralismo radicado numa visão de contemporaneidade, imposto
pela necessidade de inovação no campo fotográfico, onde se contempla não apenas
as ferramentas informáticas, como as da imaginação ao serviço da criatividade.
E aqui volta a levantar-se mais uma
vez a questão da natureza das coisas… do Fotográfico, sempre que se procura dotá-la
de inesperadas representações visuais, carregadas de sentidos, significados,
símbolos renovados; novas propostas formais: seja através da temperatura monocromática
das imagens ou das suas cores!…
Assim, e numa altura em que a morte da
fotografia, chega a ser profetizada por uma outra reputada figura, as imagens da
presente Exposição mostram-nos como está viva e se recomenda!
Finalmente, e para desfecho desta
apresentação, gostaríamos de convocar a expressão “ liberdade livre” utilizada pelo poeta António Ramos Rosa para
designar o “ato poético em cisão com
o real”:
Pois tal expressão não deverá ser
extensivamente aplicada à fotografia de MPF?
E não será esse o motor pelo qual o
fotógrafo se move?
Pela nossa parte, cremos que sim!
13/10/2018 Renato Monteiro