quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Desenho de CARLOS MONTEIRO




(...) Sem sombra de dúvida sou, antes de mais, o cão! O perdigueiro amestrado, o filho do lobo, do chacal ou do coiote! A aceitar por troca, a cada peça que te trago às mãos, uma palmada no lombo ou um afago no focinho! Está bem! Está bem! É mesmo assim! E não tarda a ouvir-te repetir: busca, busca! Como se carecesse de ser incitado ao que é inerente á razão do meu ser: a caça aguardada dia após dia em cada ano! Que raio! E eu quero é ver-me, no futuro, a arfar como um cão velho! A já não poder embriagar as narinas com o cheiro fresco do sangue das presas; nem a desembaraçar da confusão das penas arrancadas, que se apegam à minha boca, e quase me asfixiam.... Então aí é que estou para conhecer o fim que me espera! Se o abandono na rua, o desprezo ou o tiro de misericórdia!

E como sonho ainda em reencontrar a liberdade dos meus tempos milenares! De quebrar com os elos desta cadeia que me prende à submissão! De ser fiel ad eternum! Em troca do pêlo escovado, um enganoso osso de couro cru para distração; um banho e uma ida por outra ao veterinário sem me queixar de nada…Pudesse roer esta coleira a asfixiar-me! Dar menos ao rabo, e pôr-me antes a rosnar. Senão mesmo a uivar, sobretudo nas noites cálidas, enquanto as estrelas rebrilham como os olhos dos bichos que levanto ao andar pelo campo afora!

Antes que a minha vida se venha a perpetuar fossilizada numa estátua de pedra, em cima de uma campa, aos pés do dono!
                                                                   
                                                  Lumiar, Lisboa, 2 de dezembro de 2015