Como uma lágrima tua nos meus dedos
Monstros,
monos, mastronços, mostrengos é o que se queira. Por mim, não os poupo! Impossível
pô-los a falar ou falar com eles! E se me provocassem riso, mas não! Antes me
incitam à blasfémia! Então, a personificação do Tejo na figura agigantada de um
barbudo com ar robotizado, encimado por uma estrela é demais! Quase tropeço com
os olhos! Antes a escultura do Cálice, imaginariamente a transbordar de vinho para
os beiços gordos e sedentos de algum baco que por aqui passe! E do touro
ostentando igualmente uma estrela na cabeça. Onde meteu ele a força para
marrar? E do cavaleiro façanhudo a investir contra a gente moura. Quantos
símbolos estelares arrancados abusivamente aos céus!
E
porque não hei de vendar os olhos até me ver rodeado por outras imagens? Como a
visão de um círculo de sereias à minha roda, acobreadas, douradas, prateadas; de
origem negra, branca ou asiática; de lábios tingidos com as cores do arco iris…
Mulheres-peixe, com pele húmida escorregadia de óleo de mel. Sereias sem
alianças a anilhar-lhes os dedos, crucifixos ao pescoço, tatuagens, correntes
nos pés… Sereias com escamas das carpas do Tejo; das garoupas que entram no
estuário; do lúcio estrangeiro, voraz; do migrante sável, que uma barragem
impede de ir mais além… Sereias acantonadas
em torno do Nacimiento del Tajo onde o verão cedeu repentinamente lugar ao
frio. Ou será impressão minha, causada pela manhã ir ainda a meio, do efeito da
noite mal dormida, do contacto com a água gelada que cai da bica? Um fio menos
espesso que o meu dedo mindinho! Uma veia de sangue cristalina que, no dizer do
Saul vem de mais atrás, mas que para mim, vem de todas as direções: do vapor das
nuvens às toalhas subterrâneas de água; dos afluentes ao atlântico que irriga o
Tejo a cada maré que sobe. De um polo
a outro da terra, para já não falar dos astros apagados ou pululantes de vida. E
quem sabe se mesmo eu próprio não o alimente!...
Então,
inspiro fundo como um animal que procurasse o cheiro de uma fêmea muito ao
longe… Sorvo o ar em intervalos breves e ouço-me respirar… A sensação de estar
a aquecer o frio! Da luz tornar-se mais intensa deixando-me, neste instante, quase
cego! E a crescer como o caule de uma planta a inchar e a estender-se fremente,
sem fenecer… Uma gota de seiva húmida a molhar-me, como uma lágrima tua nos
meus dedos. A água da tua boca na minha! E deixa-me afagar os cabelos de seda
da tua cabeça, ó minha rapariga mulher, tão despida como este céu sem nuvens!
Este espaço em redor, como se fosse temporariamente subtraído do mundo, sem
vivalma… Apenas desvendada pela ave de rapina que do alto te fixa, assim nua ao
sol, que faz luzir o quartzo cristalino das pedras e as gotas do orvalho do
musgo!
Ó
minha mulher desabrigada, deixa-me beber-te a alma pelos mamilos; ajoelhar,
oferecendo-te a cabeça às tuas coxas. Qual oferenda deposta num altar dos
antigos deuses. Voltear-te pela cintura até colar-me à maciez redonda das tuas
nádegas. Depois, lábios nos lábios, dizer que te amo para quê, se o teu coração
bate na palma das minhas mãos junto do meu!…E se alguma dúvida houver, podemos
trocar de corações para saber qual dos dois bate mais pelo outro…
E como
este frio da manhã me acende, que nem um álcool… E o sono que trazia se esvai
até chegar à bica de água que mal corre ao pé de nós! Como nos agasalhamos um
ao outro nesta manhã, enquanto, nem sei se grito ou gemo, ao arrepio que me trespassa pelo corpo, e uma estrela explode
entre as minhas virilhas como o fio de água da nascente que chapina no fundo
onde cai! E que lâmpada, de súbito, se ilumina na minha escuridão interior? E
que toada de silêncio ouço? E que bolhas de ar me parece ver à nossa volta? Ó
meu sal, meu açúcar, minha canela, minha pimenta; prazer meu e minha dor!
E
como tão de repente, levantou o vento! Será para anunciar a aproximação de
alguém? Ó minha mulher-rapariga quanto me sinto agora tão cansado. Como se tivesse
arrancado à corda um balde pesado de água do fundo de um poço! Deixa-me, de
novo, fechar os olhos, sabendo de antemão que, ao abri-los, já te foste embora!
Morrer pela eternidade de um minuto. Sentir, pouco a pouco, apagar-se o fogo
lavrado no meu corpo por ti! E a ave
de rapina ainda a vejo no alto. Será que te segue por onde quer que vás? Mas
não és tu quem ainda avisto meia imersa na pequena laguna mais além? Eu sei, a miragem
que me persegue para onde quer que vá! Sempre tu, com os calcanhares a baterem
nas sandálias, correndo pela borda do rio, sem dares pela chegada do instante da
minha partida. Do sinal do meu adeus. Que vou deixar-nos aos dois, e partir eu
só!
Parque-Expo, Lisboa, 4 Março, 2917
2917 parece ter sido ao tempo demasiado que transforma em confessional inventiva uma fresca memória do que ainda não sucedeu mas ameaça desabar sob a pele madura que despe o Ser, peito com peito, no ás de trunfo aceso nas águas corre-corre em que de mansinho o esquecimento goteja os seus rumores sobre os nossos humores, descobertas e amores ou, fosse como fosse, assim sendo, seja
ResponderEliminarCaro argumentonio
ResponderEliminarNão vou dizer que o teu comentário me pareça de uma transparência cristalina!... Olha que tive mesmo dificuldade em descascá-lo!... Linguagens pós- modernas, né? A acrescentar a esta dificuldade, uma outra: não saber como escrever a cónica subsequente! Só problemas!
RM
havia uma lágrima e... «Parque-Expo, Lisboa, 4 Março, 2917»... depois, brotam palavras nascentes, histórias rios e miragens estuários, tudo a desaguar na sinfonia 31, ó ânsias ;_)))
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