Desço à cave das minhas ocupações purgatórias. Abro a porta, tateio a parede até ao clique do interruptor. A escuridão ilumina-se. É aqui que eu respiro como em nenhum eucaliptal. É a bem dizer o único espaço da terra onde eu fico plenamente comigo ou com a sensação disso.
Os ponteiros do relógio suspenso na parede defronte indicam três e trinta. Não sei se da madrugada, se da tarde, pois desde há largo tempo que se mantêm paralisados. Sobre o mostrador, revestido por uma ténue película de pó, repousam em paz. E ainda bem, porque quando me fixo neles, transmitem-me uma noção de paragem do tempo, que muito convém a uma pessoa sempre tão apressada como eu; que não deixa de sentir, de quando em quando, a necessidade de fazer um stop; de abstraidamente deixar o cigarro abandonado no cinzeiro, ardendo até à fronteira do filtro.
Quando olho para o relógio, chego mesmo a pensar que ele se substitui a um crachá que me pessoalizasse, ou a uma espécie de brasão sem qualquer aristocracia.
A cave é o meu feudo. Um domínio que ninguém pisa. Porque subterrânea, eu diria mesmo que ela prolonga as coisas que me são interiores, as menos visíveis. As que se ocultam debaixo da pele e das quais, em certa medida, eu dependo para respirar. Como um pulmão. A cave é, à luz disso, o meu segundo pulmão.
Porém, e por qualquer razão que perde nitidez aos meus olhos, uma secreção mais intensa de qualquer glândula, um excesso de acidez, sei lá, eu disponho-me excecionalmente a franquear-te o acesso à minha cave. Não fisicamente, claro, mas com a tua participada imaginação.
Cuidado com o último degrau! Observa como faço penetrar a chave na fechadura apenas através do olhar do tato. Para esta operação, como um cego dispenso a visão das retinas. De luz, já acesa, não terei logrado surpreender-te... Mas aguarde-se. Ao primeiro relance, a minha cave não se distinguirá de muitas outras tornando-se, apesar de tudo, evidente nunca a ter ocupado com nenhuma arte oficinal. Como o restauro de móveis que, no andar que habito, se vão desengonçando por ação das brocas corrosivas do bicho da madeira e de alguns maltratos meus, por vezes, tão mecânicos e precipitados.
Aparentemente a minha cave não testemunha nenhuma ocupação com qualquer hobby. Erro teu!... Comece-se por dar atenção àqueles contentores de plástico, uns verdes, outros brancos, ali, ao fundo. Devidamente empilhados, não trepam até ao teto para não deformarem os que se perfilam rente ao soalho. Seria o caos! Libertando a tampa de um deles, atenta ao seu conteúdo. São pedras. Pedras e mais pedras. Aos milhares, variando de espessura, cor, peso e forma, havendo, casos raros, uma ou outra que exceda o volume da minha mão fechada.
São pedras da terra que cheiram a um tempo antiquíssimo, levantadas por mim do chão, quase sempre basáltico, em tempo seco.
São pedras opacas, densas, duras, ásperas ou polidas, de aspeto mais ou menos regular. Não são preciosas no sentido petrológico do termo... mas são-no ao meu afeto, bem como ao meu próprio tato quando lhes pego. E mais ainda à minha capacidade de gozar com a leitura que faço das suas arestas, ondulações, serrilhas, gumes e outras asperezas...
Eu posso tratá-las, de uma forma que sei, especializada ou, mais familiarmente, por tu. Prefiro a última, que traduz uma comunicação mais livre, com a vantagem ainda de, deste modo, lograr possivelmente atrair mais a tua atenção sobre elas.
As pedras não são seres vivos que mexam pés, cabeças ou dedos, mesmo que estes movimentos se tornem apenas perceptíveis através da filtragem ampliadora de um microscópio. Nenhum sopro as move por dentro. São inércia. São de uma insensibilidade atroz. Indiferentes ao mundo, nem sequer vegetam. E, contudo, afirmo-te eu com a maior das convicções, elas são dotadas de outros atributos, não mais pobres dos nomeados. Como, por vezes, é tão ilusória aquilo que se toma por realidade. E o contrário disso! Experimenta pegando nesta pedra leve e curiosamente tão geometricamente regular. Sente. Não ficas a conhecer a sua temperatura? Não é um pouco mais baixa da do ar que se respira nesta cave? Apura a sensibilidade da polpa dos teus dedos. Não é capaz de cortar? Libertando-a do pó, toca-a com a língua e os dentes. Nenhuma sensação a dureza, a resistência, a eternidade ou quase eternidade? E, por fim, apura o teu ouvido. Apenas silêncio? Vá! Aplica o teu ouvido de uma forma inabitual, como se, de catana em punho, quisesses abrir por entre uma densíssima senda de ramos, teia de troncos, a mais espessa folhagem, um estreito caminho, uma pequena clareira.
Escuta-a através de uma audição que não é menos tua, mas que nunca cuidas em exercitá-la. Escuta. Sim. Escuta. Um ruído que parece formar-se de um redemoinho de água. Outro que parece vomitado pela cratera de um vulcão. Outro ainda que, de tão longínquo, se perde no Cosmos. Vem do Cosmos. É devolvido ao mistério isondável do Cosmos. Mas depois atenta para outros ruídos que sobem e descem dentro de si, e mais próximos de ti. Não os reconheces? Exatamente! Sons de quem martela, usa bigorna, modela a vida com o barro que dispõe; sons de quem está cativo e chora; livre e grita. Sons de quem transporta em si mesmo a seiva do sangue, um esqueleto de nervos e ossos; um coração que, ao contrário dos ponteiros do relógio, tem o seu tiquetaque mais apressado quando corre; mais compassado quando quietamente adormece.
Sons que parecem produzidos por zumbidos de abelhas ou asas de aves. Sons que, alinhados paralelamente a estes, parecem vir do berço ou da pequena cama da tua infância. Sons da ( tua) humanidade, concentrados na proeza desta pequena pedra. Perguntarás: arqueólogo, tu? Nem pensar. Simples colecionista? Se tal for possível, menos do que isso. Apenas pelas sensações puras e intransmissíveis.
Há quem vá ao cinema com a expectativa de sentir uma aventura, que é sempre do outro, e simular vivê-la. Há quem acumule frascos de perfume pela sensação que comunicam fluidos especiais ao serem usados nas trocas e andanças do quotidiano. Há quem viva mais penetrantemente ante a visão da morte de um touro uma arena. Há quem. Há sempre um quem qualquer que procura, com maior ou menor grau, deixar-se perpassar por uma ou mais sensações. De outro modo, como teriam elas a consciência de que viver pode, aqui e além, ter sentido e ser prazer?
A recolha que fiz destas pedras deve-se, pois, tão só à necessidade física e mental de descer ao tempo humano e não humano. De sentir, através desse mergulho, a vertigem e o impacto ao bater no fundo, impossível de vislumbrar à superfície da água.
Mas deixa-me agora mudar de agulha, conduzindo-te para outro espaço da minha cave. Apenas mais cinco ou seis passos para a direita...Não mais!
agora que franqueaste as portas dos lugares até há pouco ainda secretos deves ter consciência de que podes ter aberto a caixa de pandora... deixaste que o leitor sentisse os cheiros, tocasse a geometria suave das tuas memórias líticas, visualizasse o equilíbrio ameaçado das caixas que formam paredes atrás de paredes, num labirinto de ter vivido muito e depressa, agora vais ter que abrir outras divisões, folhear outros cadernos de papel pardo, mesmo que bolorentos, e continuar a contar histórias de verdade duvidosa, e ainda bem, de memórias muito retocadas, como são todas, de cheiros e cores intensas, mesmo na escuridão voluntária da tua cave. Venha o próximo capítulo que este já é passado!...
ResponderEliminarMuito me surpreendes, afazeres!...
ResponderEliminarO meu compromisso na divulgação de textos, alguns dos quais conservados há séculos, é muito cauteloso.
Na verdade, não se sabe quantos frutos dará esta época a árvore plantada...
Vou esperar sem pressa!
Um abraço,
RM