sábado, 25 de março de 2017

CRÓNICAS DO TEJO (VINTE E SEIS)



Tempos do demónio se anjos houvesse!

E chego a Poveda de la Sierra onde me albergo por duas noites. A casa rural do João, homem pequeno, sempre a rabiar do balcão para as mesas do bar e da esplanada, comboio alfa sem paragem na maior parte da estações, que dois dedos de conversa com um cliente, são euros perdidos… Mas talvez a nota mais negativa que atribuo ao João se deva  à falta de uma série de objetos bem corriqueiros e imprescindíveis  na cozinha. Como uma faca de serrilha, guardanapos, uma tábua de mesa, uma frigideira e o saca-rolhas. Deste modo, o João não passa de um prato sem tempero! O João é uma canha mal tirada! O João é uma lotaria sem terminação! O João só sabe dizer hola e raspar-se para outro cliente a quem só sabe dizer hola! E eu quando largar a casa rural, pago-lhe e pisgo-me sem lhe dizer adeus. Despacho-o à velocidade do som, que a galinha é dos dois e vamos ver qual de nós apanha os ovos… E lá volta ele atrás em acelerada maratona para levar o pano de limpeza à sua mulher… Ora, que tropece, se esfole, enfie um pé no balde da esfregona, esmurre o nariz na tabuleta a indicar o WC, caia na valeta, tudo de pior para o João! E não é que, ao embirrar com gente assim, às vezes até sou como ela? Ou pior, quando faço questão em sê-lo!

Sim. Mas é provável que hoje tenha acordado com a cabeça debaixo do braço e um dedo do pé preso entre os dentes. Que chegasse a espumar pela boca e a grunhir com qualquer sonho. Que tivesse sido mesmo objeto de uma outra prenhez, reincarnando, por um instante, um pequeno monstro. E tudo sem dar por isso! O certo é que hoje acordei a olhar de sobrolho carregado para o mundo, coisa que, caso queira, posso alterar: Ei, amigo João, e quer fazer o favor de me indicar um trilho para um pequeno circuito pedestre ? Está-me a dizer por ali? Pois muito bem. Obrigado. Então  lá vou eu!” E o João ainda há de ser mais prestável do que aparenta! O trabalho é que o mata! De resto, bastam as suas fundas olheiras para espelharem as poucas horas dormidas e quanto o trabalho lhe pesa, com a ida matinal ao mercado para se abastecer; o serviço de mesa, as encomendas, a contabilidade diária; o atendimento dos telefonemas, a limpeza e as arrumações, que a mulher não chega para tudo… Quantas atletas há a perderem tantas calorias diárias como ele? Por mim, até se justificaria que andasse com um equipamento desportivo e os clientes não regateassem, de quando em quando, uma salva de palmas, senão mesmo a atribuição de uma taça recebida em cima de um banco rústico improvisado de pódio. Sim, só o João está à altura de substituir o João. Mais ninguém! Tiro-lhe o chapéu e, acabada a minha estada aqui hei de expressar com um caloroso abraço quanto foi gratificante conhecê-lo não apenas no seu empenho irrepreensível com o cliente como enquanto pessoa.

Mas vamos então pelo trilho afora, como quem penetra num documentário sobre a natureza da National Geographic. Uma paisagem onde o Tejo, aqui e ali sobressai, retalhado pela vegetação que o bordeja em tom de verde gelatina transparente, quando não acaba mesmo por desaparecer, camuflado pelo arvoredo ou qualquer relevo mais saliente, perdendo eu a partir daí o seu rasto…. Mas é ao atingir um dado ponto que me interrogo sobre a minha progressão, quando o trilho interceta uma área um pouco pedregosa, onde se desenha uma profusão de caminhos que sobem ou descem em várias direções...
 E aí o que fazer? Fosse bicho e não me interrogava. Que havia de farejar um ou outro cheiro. Ler a impressão de uma unha no chão, o rasto de uma cauda, uma pena de ave ou pelo de animal que fosse… E sempre haveria de reencontrar uma pista sem me emaranhar nalgum labirinto… O rio! O rio! Ou antes, é a perceção que ele corre logo ali adiante, que me anima a descer… E mais ainda ao deparar, ó quanto afortunado sou, com uma pequena seta indicando o Salto de Poveda, que sei situar-se nas imediações da casa rural. Uma queda de água sem as cores saturadas como os postais a ilustram, nem o impacto das explosões de espuma, o estrondo da precipitação… Nada. Ou antes, pouca coisa para quem surpreende o Salto fora da época dos maiores caudais.. Que uma porção de baldes de água a resvalar pela parede rochosa, não deslumbra os forasteiros, optando por fazer mais olhinhos para as selfis com o Salto de Poveda como um cenário pouco mais do que mudo. Mas por mim, que me bastam os espelhos para me retratar, o me atrai é a rapariga que pinta uma aguarela, tornando a cascata mais torrencial do que se mostra, opção de que mais gosto. E soubesse do ofício, quem a pintava era eu, com o cabelo revolto e verde, talvez debruçada sobre a ponte de corda que se suspende a dois passos daqui…

E porque tão de súbito me deu em pensar nos troncos, quais rebanhos de madeira levados pelos gancheros rio abaixo a partir desta zona, até Toledo, Aranguez? Homens com mãos de ferro, tal como os ganchos que na extremidade das varas ora picavam ora puxavam para si os troncos, não fossem alguns desatinar com o turbilhão das águas e deixarem-se encalhados lá atrás… Não pararem de redemoinhar sobre si ou mesmo começarem a trepar, como animados de vida, sabe-se lá, tresmalhados, por qualquer das margens acima! Homens do demónio, se anjos houvesse. Em constante e forçado equilíbrio, de pé, sobre os troncos atados entre si em improvisadas jangadas, que um abrupto declive de água, um rápido mais impetuoso, num ápice tudo desconjuntava contra uma fraga. E quanta ousadia afogada nas águas por aqueles que não evitaram rasgar as carnes nas farpas dos pedregulhos? Sucumbirem nos poços mais negros e fundos por tampouco saberem dar uma braçada? Quantas lágrimas ao relento nunca vistas? Quantos sonhos submersos presentes na estátua do ganchero implantada em Poveda de Sierra? O que me pareceu ser, à primeira vez que por aqui passei, um pastor sem gado ou um campino sem manada! E só depois acabar por reconhecê-lo como um jangadeiro em tempos também vividos pelos rios Zêzere e Tejo abaixo!

                                                                          

                                                  Parque-Expo, 1 de março 2017
















2 comentários:

  1. sim senhor, o nosso michel onfray de portugal e espanha, de saltos na raia, de viagens entre azuis e verdes (com ligeiros toques de vermelho ocre), entre líquidos e vegetais, entre planícies e serranias, entre o português e o castelhano, quanto mais caminha mais se encontra - quando se podia perder na estéril repetição... - na escrita, na memória, na riqueza dos personagens - a começar pelo seu próprio avatar - e vai deixando um agradável sabor de viagem partilhada, de companheiro de jornada, à espera da descoberta, do imprevisto, do próximo verso escrito com espuma do tejo, ou de uma prosa de fim de tarde numa qualquer plaza mayor a propósito da inquietude ou da beleza da mujeres (sempre mais hermosas ao fim da tarde...), ou simplesmente dando substância aos verso do Machado "Caminante no hay camino,se hace camino al andar…"
    venham mais cinco!

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  2. Estão a ver aqueles foles domésticos que se aplicam nas lareiras para aquecer o inverno ou nas churrasqueiras para assar as carnes? Os ferreiros também os usavam para a modelagem do ferro! Acham os meus amigos que as coisas que andam para aí a soprar é para dar ouvidos?

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