sexta-feira, 26 de maio de 2017

CRÓNICAS DO TEJO ( TRINTA E DOIS)



Como se fosse um suspiro da terra.


Quando é que me vi a prestar tanta atenção às bermas? Tão cauteloso com as curvas mais acentuadas? A fazer um manguito à aceleração nas retas?
Será que temo o risco de voar para fora de estrada? Só me falta cair na condução do velho que passa pela minha rua, com a visão turbada pelas cataratas e já um pouco tremente. Ou então tudo isto não passa de um certo cansaço e sonolência, nada vulgares para um papa quilómetros como eu, causados pela febre do ar ainda quente. E se a febre for antes minha? Já sei! Todo este abrandamento a nada mais se deve do que à reaparição do tempo a retardar o movimento do Citro! Senão mesmo ao intuito de congelar o seu avanço num embate contra o grosso tronco de uma árvore, um muro, a fachada de uma casa… E, por efeito disso, a paralisar-me de vez a ação para qualquer gesto futuro. O tempo, qual ventosa a exercer a sua sucção sobre mim, a sorver-me o sangue até ao tutano, tomando a dianteira, sim, ultrapassando-me! 

Pois então, e em breve, deixar-me-ei ficar por Vila Velha de Ródão, que não estou para ressentimentos frustrantes de vencido nesta tão velha disputa contra o tempo. Mas desta vez, sem beber as estrelas por copos de cerveja à beira Tejo, e antes a pernoitar na moradia da Lídia, que nem um náufrago por uma boia, bem precisado estou de um banho e de uma cama!

E é um segundo após o toque á campainha, que  vejo a Lídia assomar por entre os caixilhos da porta, como a figura de uma antiga madona, emoldurada numa tela. Só pode ter-me surpreendido através dos cortinados a estacionar no passeio!

Apesar de há muito fazer da sua residência um ponto de atracagem para uma, duas dormidas, a verdade é que as minhas reaparições, sem aviso prévio, nunca são assinaladas com declaradas euforias. Ao contrário, muito contidos, nenhum de nós ensaia um passo para além da fronteira das perguntas e respostas convencionais, que nada acrescentam ao conhecimento de qualquer de um de nós sobre o outro:

Por aqui? É verdade! De viagem? É como vê! E como está? Vai-se indo? E quantos dias espera ficar por cá? Só até amanhã. E a sua filha ainda se mantém no ensino? Saiu? Então fez como eu! É a vida. É a vida! E o seu quarto já está prontinho para si!


E assim completa a Lídia o que tem para dizer, entregando-me a chave e eu a importância da dormida, que logo depõe no bolso do avental de peito que trás sempre em casa.

E agora, rápido para o balsâmico banho debaixo da catarata do chuveiro. Da espuma do sabonete a arder-me os olhos; da pressão da água a arrastar para o ralo todo o pó acumulado nas etapas de hoje! Pena é não poder igualmente lavar as marcas das unhas tatuadas na minha pele pelo tempo? Eu sei, eu sei… Paciência! A água não lava tudo!

Entretanto, é só enxugar-me; passar o pente pelo cabelo, revendo os traços faciais da mãe, esculpidos na minha cara refletida no espelho. Que toda a família dizia eu sair a ela! E, finalmente, percorrer, a passo silencioso mas apressado, o corredor que conduz ao quarto, imerso no lusco-fusco, a não dispensar, dentro em breve, a iluminação do candeeiro suspenso do teto.

E o que falta para deixar-me abater, quanto antes, pelo torpor anestesiante do sono? Ora, nada. Mas qual quê?! Que tic-tac é este a irradiar-se pelos nervos? Só pode ser o que provém da repetida e sincopada dança pendular do relógio de parede! Então, levanto-me para o calar de vez, extraindo-lhe as pilhas que animam o mecanismo. Mas o suspiro de alívio morre à nascença que, num ápice, dou conta de um outro imparável tic-tac, menos alto que o primeiro, mas igualmente irritativo. Está visto! É do despertador em cima da mesinha de cabeceira. Pudesse utilizá-lo para tiro ao alvo! Ou entalá-lo num torno mecânico. Reduzi-lo a pura chapa metálica! Seja como for, há que submeter este relógio à mesma operação do primeiro: calá-lo!

Porém, ante a ameaça do meu descanso vir a ser violentado pelo mais ligeiro ruído, sinto-me um pouco alterado, ansioso, inquieto! Um enervamento que cresce mais ainda, ao reparar como os próprios objetos mudos se fazem ouvir pelo quarto. Não digo todos, mas alguns. A exemplo disso, o querubim bochechudo, em porcelana, a voar que nem uma pomba, rente à cómoda de pinho; a matrona de pano, tão flácida, espreguiçada no sofá, como se estivesse deitada na areia da praia, a refrescar, onda a onda, os pés…

Mas não são, afinal, os objetos que me falam. O que ouço é antes a mim mesmo. Como aquele cachorro malhado de orelhas cabisbaixas, supostamente preservado pela Lídia, em memória do marido que fora caçador havendo-a deixado na condição de viúva prematura.

Sim! Eu é que sou, na verdade, o único que se exprime, trocando contra vontade as minhas vozes pelo silêncio retemperador do sono… Ah, não me encontrasse, de momento, tão agitado, e mais ainda, ao deparar com a visão de cristo crucificado  na parede, ao fundo da cama! A cena do martírio milenar atravessado como um espinho na carne desde a infância é que não!

Antes um cartaz de Guevara a puxar umas fumaças do charuto; da Marilyn com o vestido a fazer de largo abat jour; de Luther King ou da Rosa Luxemburgo; de Hitchcock, ou de Bakunin… 
Preferíveis estes ícones ao mártir que, cuidadosamente, retiro da parede para o acamar dentro de um dos gavetões da cómoda. E será a partir de agora que vou poder, sem mais delongas, abandonar-me à cama como quem se aninha numa nuvem flutuante de algodão doce?


Não sei porquê, mas a manhã que nasce tem qualquer coisa a ver com o momento de chegada ao quarto… É certo que a noite aluarada foi-se, desaparecendo o rasto das estrelas… No entanto, há uma réstia de bafo seco, que parece preservar-se ainda desde o fim da tarde de ontem… Como o perfume da laranjeira em flor, embora mais suave, plantada tão perto da janela…

Inalo-o como se fosse um suspiro da terra. Possa tonificar-me para o trajeto que espero empreender, após o pequeno-almoço tomado no café defronte da moradia da Lídia. Mas não sem antes fixar mais demoradamente as rosas, e alegrar-me, um minuto que seja, com os cães agitados, saudando-me à janela; e achar graça às galinhas cacarejantes a esgravatarem a terra.

Até me decidir, finalmente, por abandonar o aposento e descobrir, quase incrédulo, o que me passara despercebido: a universalizada imagem do menino da lágrima pregada na parede da cabeceira da cama! Então digo: siga, siga, e quanto antes. Não vá o diabo do rapaz começar a verter lágrimas e lágrimas, inundando o quarto e toda a habitação da Lídia. Senão mesmo a vila inteira!

Mas onde terei guardado as pilhas, de modo a deixar o compartimento, de novo, cronometrado? Mesmo vazio!

                                                                                    Lumiar, 25,5,2017








2 comentários:

  1. per este andar, ainda ouviremos o pulsar da terra, do centro da terra, ao calar-se muito o algaraviado ubíquo dos dias com e sem espuma que perseguem moininhas a vida inteira até não darmos por nada a poder de alguma dor, paixão, atenção ou outra anomalia descarrilatriz capaz de nos abstrair ou para lá disso, aptos que ficamos a dialogar a sós, com o nada ou com algum deus de dia nessa hora e então adeus, temos hora e dia apontados ao silêncio a ressoar a sangue, sangue dos genes ou mesmo da espécie, herdeiros que somos da geologia primordial e do ar tornado verbo à beira da purificação, do Ser, do de-ver, rio, porventura o mesmo que nos alimenta peito, alma ou eu, senão mesmo o real a um tempo feito calma ou seu esplendor total, entre as margens como quem se conhece e quer, per exemplo, ou deixar correr, emudecer, oferecer, afinal, já é um bom princípio

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  2. Caro Argumentónio

    Agrada-me a ideia de ouvir o "pulsar do centro da terra". Poderá ser como perscrutar o coração palpitante de um corpo...

    E também não é nada mau ouvir, de quando em quando, uma voz como resposta a uma cronica escrita no silêncio...
    Acho que só preciso de mais duas ou três...Já não é sem tempo!
    Um abração,
    RM


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