Como se fosse um suspiro da terra.
Quando é que me vi a prestar tanta atenção às bermas? Tão cauteloso com as curvas mais acentuadas? A fazer um manguito à aceleração nas retas?
Será que temo o risco de
voar para fora de estrada? Só me falta cair na condução do velho que passa pela
minha rua, com a visão turbada pelas cataratas e já um pouco tremente. Ou então
tudo isto não passa de um certo cansaço e sonolência, nada vulgares para um
papa quilómetros como eu, causados pela febre do ar ainda quente. E se a febre
for antes minha? Já sei! Todo este abrandamento a nada mais se deve do que à
reaparição do tempo a retardar o movimento do Citro! Senão mesmo ao intuito de
congelar o seu avanço num embate contra o grosso tronco de uma árvore, um muro,
a fachada de uma casa… E, por efeito disso, a paralisar-me de vez a ação para
qualquer gesto futuro. O tempo, qual ventosa a exercer a sua sucção sobre mim,
a sorver-me o sangue até ao tutano, tomando a dianteira, sim,
ultrapassando-me!
Pois
então, e em breve, deixar-me-ei ficar por Vila Velha de Ródão, que não estou
para ressentimentos frustrantes de vencido nesta tão velha disputa contra o
tempo. Mas desta vez, sem beber as estrelas por copos de cerveja à beira Tejo, e
antes a pernoitar na moradia da Lídia, que nem um náufrago por uma boia, bem
precisado estou de um banho e de uma
cama!
E
é um segundo após o toque á campainha, que vejo a Lídia assomar por entre os caixilhos da
porta, como a figura de uma antiga madona, emoldurada numa tela. Só pode ter-me
surpreendido através dos cortinados a estacionar no passeio!
Apesar
de há muito fazer da sua residência um ponto de atracagem para uma, duas
dormidas, a verdade é que as minhas reaparições, sem aviso prévio, nunca são assinaladas
com declaradas euforias. Ao contrário, muito contidos, nenhum de nós ensaia um
passo para além da fronteira das perguntas e respostas convencionais, que
nada acrescentam ao conhecimento de qualquer de um de nós sobre o outro:
Por
aqui? É verdade! De viagem? É como vê! E como está? Vai-se indo? E quantos dias
espera ficar por cá? Só até amanhã. E a sua filha ainda se mantém no ensino?
Saiu? Então fez como eu! É a vida. É a vida! E o seu quarto já está prontinho
para si!
E
assim completa a Lídia o que tem para dizer, entregando-me a chave e eu a importância
da dormida, que logo depõe no bolso
do avental de peito que trás sempre em casa.
E
agora, rápido para o balsâmico banho debaixo da catarata do chuveiro. Da espuma
do sabonete a arder-me os olhos; da pressão da água a arrastar para o ralo todo
o pó acumulado nas etapas de hoje! Pena é não poder igualmente lavar as marcas
das unhas tatuadas na minha pele pelo tempo? Eu sei, eu sei… Paciência! A água
não lava tudo!
Entretanto,
é só enxugar-me; passar o pente pelo cabelo, revendo os traços faciais da mãe, esculpidos
na minha cara refletida no espelho. Que toda a família dizia eu sair a ela! E,
finalmente, percorrer, a passo silencioso mas apressado, o corredor que conduz
ao quarto, imerso no lusco-fusco, a não dispensar, dentro em breve, a
iluminação do candeeiro suspenso do teto.
E
o que falta para deixar-me abater, quanto antes, pelo torpor anestesiante do
sono? Ora, nada. Mas qual quê?! Que tic-tac é este a irradiar-se pelos nervos?
Só pode ser o que provém da repetida e sincopada dança pendular do relógio de
parede! Então, levanto-me para o calar de vez, extraindo-lhe as pilhas que animam
o mecanismo. Mas o suspiro de alívio morre à nascença que, num ápice, dou conta
de um outro imparável tic-tac, menos alto que o primeiro, mas igualmente
irritativo. Está visto! É do despertador em cima da mesinha de cabeceira. Pudesse
utilizá-lo para tiro ao alvo! Ou entalá-lo num torno mecânico. Reduzi-lo a pura
chapa metálica! Seja como for, há que submeter este relógio à mesma operação do
primeiro: calá-lo!
Porém,
ante a ameaça do meu descanso vir a ser violentado pelo mais ligeiro ruído,
sinto-me um pouco alterado, ansioso, inquieto! Um enervamento que cresce mais
ainda, ao reparar como os próprios objetos mudos se fazem ouvir pelo quarto. Não
digo todos, mas alguns. A exemplo disso, o querubim bochechudo, em porcelana, a
voar que nem uma pomba, rente à cómoda de pinho; a matrona de pano, tão
flácida, espreguiçada no sofá, como se estivesse deitada na areia da praia, a
refrescar, onda a onda, os pés…
Mas
não são, afinal, os objetos que me falam. O que ouço é antes a mim mesmo. Como aquele
cachorro malhado de orelhas cabisbaixas, supostamente preservado pela Lídia, em
memória do marido que fora caçador havendo-a deixado na condição de viúva
prematura.
Sim!
Eu é que sou, na verdade, o único que se exprime, trocando contra vontade as
minhas vozes pelo silêncio retemperador do sono… Ah, não me encontrasse, de
momento, tão agitado, e mais ainda, ao deparar com a visão de cristo
crucificado na parede, ao fundo da cama!
A cena do martírio milenar atravessado
como um espinho na carne desde a infância é que não!
Antes
um cartaz de Guevara a puxar umas fumaças do charuto; da Marilyn com o vestido
a fazer de largo abat jour; de Luther
King ou da Rosa Luxemburgo; de Hitchcock, ou de Bakunin…
Preferíveis estes ícones
ao mártir que, cuidadosamente, retiro da parede para o acamar dentro de um dos
gavetões da cómoda. E
será a partir de agora que vou poder, sem mais delongas, abandonar-me à cama
como quem se aninha numa nuvem flutuante de algodão doce?
Não
sei porquê, mas a manhã que nasce tem qualquer coisa a ver com o momento de
chegada ao quarto… É
certo que a noite aluarada foi-se, desaparecendo o rasto das estrelas… No
entanto, há uma réstia de bafo seco, que parece preservar-se ainda desde o fim
da tarde de ontem… Como o perfume da laranjeira em flor, embora mais suave,
plantada tão perto da janela…
Inalo-o
como se fosse um suspiro da terra. Possa tonificar-me para o trajeto que espero
empreender, após o pequeno-almoço tomado no café defronte da moradia da Lídia. Mas
não sem antes fixar mais demoradamente as rosas, e alegrar-me, um minuto que
seja, com os cães agitados, saudando-me à janela; e achar graça às galinhas cacarejantes
a esgravatarem a terra.
Até
me decidir, finalmente, por abandonar o aposento e descobrir, quase incrédulo,
o que me passara despercebido: a universalizada imagem do menino da lágrima pregada
na parede da cabeceira da cama! Então
digo: siga, siga, e quanto antes. Não vá o diabo do rapaz começar a verter
lágrimas e lágrimas, inundando o quarto e toda a habitação da Lídia. Senão mesmo a vila inteira!
Mas
onde terei guardado as pilhas, de modo a deixar o compartimento, de novo, cronometrado?
Mesmo vazio!
Lumiar, 25,5,2017
per este andar, ainda ouviremos o pulsar da terra, do centro da terra, ao calar-se muito o algaraviado ubíquo dos dias com e sem espuma que perseguem moininhas a vida inteira até não darmos por nada a poder de alguma dor, paixão, atenção ou outra anomalia descarrilatriz capaz de nos abstrair ou para lá disso, aptos que ficamos a dialogar a sós, com o nada ou com algum deus de dia nessa hora e então adeus, temos hora e dia apontados ao silêncio a ressoar a sangue, sangue dos genes ou mesmo da espécie, herdeiros que somos da geologia primordial e do ar tornado verbo à beira da purificação, do Ser, do de-ver, rio, porventura o mesmo que nos alimenta peito, alma ou eu, senão mesmo o real a um tempo feito calma ou seu esplendor total, entre as margens como quem se conhece e quer, per exemplo, ou deixar correr, emudecer, oferecer, afinal, já é um bom princípio
ResponderEliminarCaro Argumentónio
ResponderEliminarAgrada-me a ideia de ouvir o "pulsar do centro da terra". Poderá ser como perscrutar o coração palpitante de um corpo...
E também não é nada mau ouvir, de quando em quando, uma voz como resposta a uma cronica escrita no silêncio...
Acho que só preciso de mais duas ou três...Já não é sem tempo!
Um abração,
RM